terça-feira, 29 de maio de 2012

O PÓS-TRANSPLANTE

CAPÍTULO VII

O PÓS-TRANSPLANTE

Carta a DEUS – 2

Bom dia Deus,

Hoje a aurora trazia uma luz diferente, com uma

luminosidade quase celestial, era o teu olhar Deus, tenho a

certeza. Olhei pela janela e os pássaros que voavam celebravam

a tua luz. Continuo a louvar-te, sei que iluminaste as mãos dos

homens e deste a tua mão ao meu pequenino para que se

mantivesse forte. Obrigado Deus por me teres ouvido, estou

contigo no meu coração e a cada hora a Tua presença traz-me

alento.

Obrigado Deus.

Lígia

Na manhã seguinte, mal chegámos à beira do nosso filho

vimos que o milagre continuava a transformá-lo com toda a sua

beleza, com todo o esplendor!

Não haviam dúvidas sobre o desempenho do novo

fígado, o Vitinho aos poucos retomava a cor normal, finalmente

tinha a cor de um bébé. A própria Dra. Isabel ficou surpreendida,

pois o amarelo acastanhado das escleroticas tinha desaparecido

por completo.

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O nosso primeiro dia da nova vida do Vitinho, resumiu-se

a estarmos ao seu lado, a admirarmos a sua muito lenta

recuperação. Ao final da tarde fomos visitados pela Dra. Ana

Maria que nos quis conhecer e deixar uma palavra de coragem.

Passou o primeiro dia e veio o segundo, sempre que se

tirava um tubo qualquer, era uma vitória e depois de tantas

derrotas, todas estas vitórias eram magnificas.

Estivemos três dias na UCI sob o cuidado da equipa do

Pediátrico. A transferência para o Pediátrico foi um momento de

alguma tensão, pois era necessário descer a maca pelo elevador,

percorrer o espaço até à ambulância e depois ir a “passo de

caracol” até ao Hospital Pediátrico. Para os profissionais do

Pediátrico ‘este passeio’ é de má memória por razões que não

quero aqui referir, o problema é que apesar da curta distância, na

avenida existem umas lombas limitadoras de velocidade que são

um verdadeiro pesadelo. Na ambulância, o médico que

acompanha a criança não pode perder de vista nenhum dos tubos

um segundo que seja, porque nenhum deles pode soltar-se e

quando passam pelas tais lombas, há o risco disso poder

acontecer. Tudo pode ser posto em causa por um simples

solavanco! Já depois, no Pediátrico, a maca tem de percorrer o

percurso inverso, isto é, tem de sair da ambulancia e ser levada

até o 2º piso onde se encontra a UCI.

Desde o primeiro dia que o Vitinho ansiava por água,

mas apenas lhe podiamos molhar os lábios. No Pediátrico, a

Lígia disse-me que achava que o nosso filho queria mamar e

encostou-lhe o peito aos lábios, mal ele sentiu o calor do corpo

da Mãe desatou logo a mamar. Só o deixámos um bocadinho e

perguntámos à Dra. Isabel se o podiamos fazer, ao principio ela

ficou admirada mas logo reagiu e disse-nos “se ele queria mamar

então que mamasse”!


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A Esperança – por Inês
Nesta fase conhecemos a Dra. Carla recém chegada de

férias. A Dra. Carla e a Dra. Isabel faziam uma excelente equipa

e no período que estivemos nos cuidados intensivos lidámos

mais com a Dra. Carla. Curiosamente esta passagam deixou-nos

poucas recordações, porque, felizmente, foi muito rápida. Já não

me recordo bem, mas penso que o Vitinho passou para a

Enfermaria no final do 2º dia, mas esse “pormenor”, agora, já

não é importante, o que interessa relatar é que a recuperação foi

rápida. Já viamos o nosso filho sorrir, já lhe pegavamos ao colo

e ele já interagia connosco. Ao 6º dia após transplante a Dra.

Isabel mandou-nos… passear!

Lá fomos nós, para os jardins do Pediátrico, admirar a luz

do sol e simplesmente sentir o vento, ouvir os pássaros, e

respirar. Como as coisas simples são as mais belas! Estávamos

reduzidos a um pequeno jardim, mas tudo era fantástico,

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especialmente a calma que nos rodeava, mostravamos ao nosso

filho as pequeninas coisas, tudo o que nos suscitava interesse,

tudo mesmo!

Começava a tornar-se possível o sonho que fui sonhando,

de que um dia lhe iria mostrar um golfinho, um cinema, uma ida

aos insufláveis, o algodão doce, a feira medieval e que iria

admirá-lo a correr, a fazer as suas asneiras, a curar o doi-doi, a

amaldiçoar os peixes que não se deixam agarrar e a espreitar pela

janela do avião!

Tudo o que faziamos naquele jardim tinha o mesmo

significado, éramos livres e podiamos olhar para o céu e tentar

perceber se estávamos a ser vigiados! Talvez pelo meu Tio

Daniel que nos tinha deixado há tão pouco tempo, talvez nos

tivesse visto e estivesse a cantar-nos uma das suas belas músicas,

“brise, brise douce, …” quem sabe! Se existe um céu, ele estará

lá de certeza e a sua voz confunde-se agora com a do vento, deve

estar olhar por nós, a sorrir-nos por entre aquela barba simpática

e a saudar-nos com o seu habitual “salut les petits amis”… talvez

esteja zangado com Deus, pois cá na terra o Daniel não Lhe dava

grande crédito, mas lá, quem sabe, talvez até Lhe tenha dado

uma reprimenda, por o ter levado antes do tempo certo, como já

o tinha feito com o meu irmão! Ou… talvez não, até porque a sua

imagem lembra a que se vislumbra do Santo Sudário! Deus não

se iria zangar com alguém que se parece com o seu filho e tinha

um coração de ouro!

O passeio pelos jardins foi o nosso primeiro passo para o

regresso à liberdade. Um ou dois dias depois fomos ao Centro de

Histocompatibilidade para nos inscrevermos enquanto dadores

de medula óssea. Na enfermaria do Pediátrico, quem lá

“estaciona” umas semanas como nós, convive com algumas das

doenças mais terríveis! Uma das Mães com que a Lígia

estabeleceu alguma empatia, foi uma Mãe de um menino com

leucemia e o pouco que ambos poderiamos fazer era

registarmo-nos enquanto dadores.

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Ao longo do tempo que durou o internamento, trouxe as

miúdas várias vezes para estarem connosco, era importante para

elas e era importante para a mãe. O mundo da Lígia continuava

cheio de limitações e condicionado pelo que o momento

impunha, ultrapassar a noite era o pior, a inevitabilidade de

dormir num cadeirão, o ambiente hospitalar, os cheiros, os sons,

tudo era deprimente! Mal davam as oito da manhã ela

telefonava-me, quer eu estivesse em Ovar, quer no hotel em

frente, dava-me as primeiras ‘sensações’ do dia e logo tudo

começava a fluir mais rápidamente, a disposição, a esperança,

enfim, tudo era muito mais fácil à luz do dia e então, ao lado “dos

nossos”, ainda mais coragem arranjavamos. Sempre que as

miudas vinham, também para elas as coisas tornavam-se mais

fáceis, primeiro porque viam o irmão e a mãe, depois porque a

vida no hotel era simpática e elas adoravam o restaurante, aquele

com nome “de quem enveredou pela magistratura”.

Apesar de tudo isto, estávamos ávidos de estar os cinco

juntos. Na segunda feira dia 02 de Agosto pedimos à Dra Isabel

se nos deixava jantar todos juntos no quarto de hotel.

Ela permitiu e assim tivemos um Jantar memorável!

Enfim, todos finalmente juntos, em família e num ambiente

acolhedor, agradável, nada parecido com o que tinhamos tido

até ali.

Foi tudo ‘quase’ perfeito! Quase porque apanhei uma

intoxicação alimentar que me deixou de rastos. Das duas uma, o

agente causador ou foi uma mousse que comi nesse jantar e que

mais ninguém comeu, ou foi uma qualquer ‘porcaria’ que comi

noutro sítio!

Mal imaginava eu o que me esperava daí a umas 6 a 7

horas...

Levei as miudas para Ovar e regressei a Coimbra, ao

levantar-me começaram as náuseas, a diarreia, vómitos, enfim já

não saí do hotel! Nesse dia a Lígia não pôde contar comigo e

como não sabiamos exactamente o que é que eu tinha, não

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poderia sequer aproximar-me do Vitinho! Estando ele com o

sistema imunitário constrangido, ninguém doente poderia sequer

aproximar-se, eu incluido, logo… entrei de quarentena!!

E foi assim, desta forma inglória que acabou a minha

contribuição! A partir dali a Lígia teve de fazer tudo sózinha.

No dia 3 a Dra. Isabel avisou-nos que iriamos ter alta no

dia seguinte. Nem acreditavamos que iamos para casa, que iamos

ficar todos juntos “a sério”, que iamos dormir tranquilamente,

utilizar os nossos quartos de banho, respirar o ar do quintal,

poder fazer uns churrascos e se o tempo ajudasse, até dar um

mergulho na piscina!

Eu já tinha ouvido falar destas “altas” milagrosas dos

meninos de Bruxelas, que iam para casa ao 8º dia, mas pensei

que fossem daquelas coisas que “só acontecem aos outros”,

aplicando aqui o dito popular num sentido positivo!

A nossa alta foi ao 9º dia e antes do transplante eu e a

Lígia tinhamos pensado que se conseguissemos passar o Natal

em casa, já seria muito bom! Ao recebermos a notícia da alta ao

9º dia sentimo-nos realmente iluminados e quase eufóricos.

Só que eu estava “feito num oito”, já tinha sido visto por

um médico e estava medicado, mas caramba, a coisa tinha-me

batido forte! No dia seguinte teriamos de arranjar uma solução

para podermos ir embora!

Assim foi, no dia da partida eu estava muito melhor, mas

não arriscámos e chamámos um taxi de Ovar. A Mãe da Lígia

entretanto também tinha chegado, o Taxi levou-me a mim, e a

Lígia levou o nosso carro.

O Vitinho ia visivelmente satisfeito a admirar a paisagem

e assim regressou finalmente a casa.

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4 comentários:

  1. tanta emoção e um turbilhão de coisas a acontecer, tinha de ser com a ajuda de toda a harmonia celeste.

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  2. Sim, é verdade! Leia o "post" "o quarto pastorinho"....
    Algo superior aconteceu e ainda acompanha o N/ filho!

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  3. Queridos Amigos,

    Desta vez sou eu a escrever uma carta aberta ao Ministro da Saúde ... Foi retirada a insençao à fibrose quitica!
    Aqui fica a carta que gostaria de partilhar convosco:
    http://transplantes-pulmonares.blogspot.pt/2012/06/carta-aberta-ao-ministro-da-saude-de.html

    Um abraço,
    Sandra Campos

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  4. Sandra,

    Força!

    Temos de arranjar uma "plataforma" que una as N/ lutas.....

    Bjs

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