NOTA PRELIMINAR
Todas as pessoas aparecem citadas pelos seus verdadeiros
nomes. Ainda assim, tentarei preservar alguma discrição e por
isso, com duas ou três excepções, irei omitir os seus apelidos.
Obviamente que quem ler o livro e conhecer os ambientes em
questão, perceberá de imediato quem são as pessoas citadas.
Espero que as mesmas não me levem a mal por isso e a todas elas
o meu sincero agradecimento por terem tornado tudo possível.
Em 2004 ‘o mundo’ da transplantação hepática era-nos
completamente desconhecido.
Entrámos neste meio por causa do transplante hepático
do nosso filho e ficámos a conhecer uma vertente da medicina
muito nobre e desconhecida da sociedade em geral.
Entretanto, ao longo dos meses fomo-nos apercebendo
das virtudes, das insuficiências e de algumas particularidades.
Recentemente, o programa de Transplantação Hepático
Pediátrico (TRH) passou por algumas dificuldades que poderiam
ter custado a sua continuidade em Coimbra e em Portugal, pois
apenas em Coimbra se fazem transplantes hepáticos pediátricos.
Hoje, graças à HEPATURIX muita coisa tornou-se pública
através dos jornais, das rádios e das televisões. Tudo isto
mostrou ao país uma realidade desconhecida de todos, mesmo de
alguma classe médica!
A HEPATURIX é uma associação de jovens
transplantados e com doenças hepáticas crónicas e nós, os pais
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que a fundámos, tivemos um papel determinante na defesa da
“Escola de Coimbra” criada há 15 anos pelo Sr. Prof. Alexandre
Linhares Furtado e hoje liderada pelo seu filho!
Felizmente que o Dr. Emanuel Furtado manteve-se
connosco e à frente do programa TRH. Hoje, passados mais de
dois anos e meio sobre essa “crise”, continuamos com algumas
preocupações, mas pelo menos o programa funciona!
Assim têm-se salvo algumas vidas “pequeninas”, porque
nem todos os casos teriam resposta no estrangeiro, como aliás se
verificou nessa altura com o envio de uma criança para Madrid e
que acabou por ser transplantada em Portugal.
Como entretanto a transplantação hepática deixou de ser
notícia pelas “piores” razões, apercebi-me que o assunto tem tido
tendência a esbater-se. Ao poder político e a quem decide, espero
que o livro sirva pelo menos para relembrar que é necessário
investir na formação de mais cirurgiões!
Espero também que este seja um testemunho útil para
todos aqueles que tenham a infelicidade de passar por um
processo idêntico! Aos outros, ficará apenas a história…
A nós tinha-nos feito muito bem se tivéssemos acedido a
um testemunho deste género na altura certa! Por imperativo
moral supri agora essa falta, era o mínimo que poderia fazer, só
espero tê-lo conseguido com a qualidade mínima desejável!
O diminutivo Vitinho foi o nome que os médicos e
enfermeiros “baptizaram” o nosso filho e por isso é esse o nome
utilizado neste livro, embora para ele o nome soe um pouco a
estranho…
Vitor Raimundo Martins
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CAPÍTULO I
E de repente, tudo pára…
Lá fora passam os carros, numa pressa tão inusitada, que
parecem pertencer a uma qualquer corrida de fim-de-semana.
Correr…
Parece que o tempo me deu um estalo em câmara lenta e
me deixou parada, fazendo cair tudo o que mexia.
Agora sinto o ar, oiço os passos discretos de quem se
move, atento nos sinais mais discretos do tempo.
O dia-a-dia está off. Suspende-se o stress, e tudo o que
ontem era importante, hoje é completamente destituído de
sentido. Creio até que o ontem tinha um pouco de insano,
ridículo e até satírico.
Agora o respirar é vital.
O homem é realmente um bicho descaracterizado, onde
nada é igual a nada, onde ontem e hoje não tem sentido. Sim, faltanos
sentido, o nosso lado racional transforma-se e dissolve-se
perante o medo. E de repente tudo fica reduzido a reacções
primárias: choro, medo, taquicardia, sorriso, tremuras…
Os “objectivos de vida” são detalhes e ficam reduzidos à
existência, quando nos se depara uma barreira, uma doença, uma
infelicidade qualquer.
São 10 horas da noite, existem dois mundos em paralelo
a rodar, um lá fora, e outro na dimensão oposta, cá dentro, dentro
de um quarto, com janela, para outra janela de vidro martelado,
com estores para tapar o sol que teima em se levantar no outro
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lado. Aqui, apenas as lâmpadas fluorescentes fazem a diferença,
quando se acendem e anunciam a noite, bizarro, não?
Depois ouve-se lentamente os choros a sobressair entre as
vozes das enfermeiras, o tlim tlim dos biberões esterilizados a
serem alvo do sossego dos recém–nascidos sem mãe presente e
que ao colo de uma bata branca deglutem o líquido branco que
os sustêm mas não acalenta.
Dentro do espaço onde faço os movimentos de
translação, ouço a bateria do computador, o respirar do meu
bebé, e penso que fazer às horas de que já perdi o ponteiro.
As minhas necessidades passaram ao ponto primário e
agora basta-me muito pouco para levar o dia, a não ser este
aparelho, que me permite suspirar pensamentos sem medo de me
perder nos mesmos.
Luto entre o que tenho por fazer lá fora e a necessidade
de estar aqui a 500%, entrecorto a escrita com o ouvido atento
no respirar. O turbilhão de emoções, entre a esperança, a lógica,
o racional e o desespero esgotam-me as forças e chego às 22
horas exausta.
Só quero que a noite me relaxe com os braços à volta do
meu filho e que a manhã apareça com laivos de nova esperança, no
sorriso sereno de uma médica, que me diz: vamos ver, vamos ver…
E no corre, corre parado das horas desfaz-se e refaz-se a
esperança, a raiva de lutar contra o tempo e a teimosia de
acreditar em Deus e que o milagre aconteça.
Tenho fé, tenho fé, tenho muita fé.
Na janela interior do quarto, tenho uma imagem de Nossa
Senhora, com uma serenidade espelhada no rosto, de que não me
tinha apercebido anteriormente. As suas mãos unidas em oração,
pedem-me paz e oração, não resisto e rezo, rezo…
Lígia,
Hospital de Santo António, Maio de 2004
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