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O Desespero – por Inês
É triste, muito triste, a morte é um vazio profundo que
não tem retorno.
Tinha eu 14 anos quando o meu irmão Carlos Alberto
morreu de ataque cardiaco. Caiu fulminado quando conversava
comigo, morreu nos meus braços e esse facto marcou-me
profundamente, pois o meu “Mano” como eu lhe chamava, tinha
apenas 18 anos. Aquele dador anónimo, era um irmão de alguém,
talvez, e o filho de uma Mãe que chorava a sua dor!
Eram 3:00 da manhã, os sentimentos atropelavam-se,
estava verdadeiramente perdido, desorientado e quando a Lígia
saiu do bloco vinha lívida, exactamente no mesmo estado em que
eu me encontrava. Ela descreveu-nos tudo o que se passou e só
saiu de lá depois de ver o Vitinho fechar os olhinhos.
Tinhamos acabado de nos despedir do nosso filho, pela
primeira vez não estávamos ao seu lado para o proteger e
faltava-nos a sua companhia, estávamos verdadeiramente
desamparados e desesperados, entregues à medicina e a Deus…
se ele existisse!
Ficámos por ali, “abandonados” nos H.U.C. e a
determinada altura percebemos que não estávamos a fazer nada
e certamente tão cedo ninguém mais nos daria novidades.
O que entretanto tínhamos conseguido saber é que iam
acontecer dois transplantes, o primeiro seria o de uma paciente
adulta e o segundo o do Vitinho. A paciente estava em estado
crítico e por isso tinha de ser a primeira, mas para nós, embora
entendendo essa lógica, esta notícia deixou-nos inquietos por
causa do tempo de isquémia.
Tentando explicar o processo de forma simples, o fígado
do dador seria sujeito à sua “bipartição”. Para um adulto, basta um
dos lóbulos, para um bébé, obviamente que a parte que lhe couber
terá de ser “reduzida”. A técnica da redução do segmento não é
propriamente simples de executar, ou melhor tanto a bipartição
como a redução, são técnicas complexas, demoradas e se mal
feitas comprometem o êxito do transplante, digo-o mas não
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percebo nada do assunto, apenas estou a citar o Dr. Emanuel
Furtado que teve a amabilidade de mo explicar! Tudo isto demora
tempo e esse tempo é precioso, o tempo de isquémia é
precisamente o tempo que o orgão aguenta até ser novamente
irrigado pela corrente sanguinea, sem que se comprometa a função
do enxerto, agora e… sempre! O ideal seria que esse hiato de
tempo não ultrapassasse as 6 horas, mas hoje em dia toleram-se
tempos de isquémia mais alargados e ao que parece, sem que se
verifique “o risco de função pobre”. De qualquer modo e como diz
o Dr. Emanuel, “numa coisa estão todos de acordo, é que a quanto
menos tempo de isquémia o enxerto estiver sujeito, melhor!”.
O facto de termos consciencia disto mesmo,
atormentava-nos, é que o transplante hepático nada tem a ver
com o transplante renal, o acto cirurgico é muito mais complexo,
muito mais demorado e… antes do Vitinho havia o outro
transplante! Nós também sabiamos que o fígado é o orgão do
corpo humano que melhor capacidade tem de se regenerar,
sabiamos de tudo isso, mas a angustia tinha-se apoderado de nós
e dificilmente nos largaria, eram diversas as variáveis e todas
elas jogavam em desfavor do nosso filho.
Saimos dos H.U.C. e fomos para o nosso hotel. Cada
segundo, cada minuto, demoravam uma eternidade! Não
conseguimos dormir e demos connosco a rezar
desesperadamente, eu, para ser franco nem era bem rezar,
lembro-me que repetia incessantemente “o Vitinho vai viver, o
Vitinho vai viver, o Vitinho vai viver, o Vitinho vai viver, o
Vitinho vai viver, o Vitinho vai viver”, isto continuamente, sem
fim, até a quase senilidade!
Finalmente chegaram as 8 horas! Fomos ao Pediátrico,
viemos do Pediátrico, disseram-nos que não valia a pena irmos
já aos H.U.C., deambulámos pelos diversos sítios. Conseguimos
apurar que o transplante do Vitinho ainda não tinha começado,
continuávamos perdidos, tentavamo-nos encontrar, mas não
conseguiamos lidar com tanta ansiedade!
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Voltámos ao Pediátrico e dirigimo-nos para a cama onde
o nosso filho tinha estava internado. A enfermaria da pediatria é
composta por pequenas alas de três camas, estávamos isolados,
porque isso era possível, isto é, o Hospital Pediátrico não estava
num momento de grande afluência e assim protegia-se o Vitinho
de potenciais contágios de outras quaisquer maleitas, pois a
acontecerem, poderiam complicar tudo muito mais. Quando
chegámos à “nossa cama” ela já lá não estava, ou melhor essa ala
estava vazia, tinha apenas duas cadeiras! Ao constatarmos esse
vazio, ainda ficámos pior, estávamos realmente muito em baixo!
Todos os dias lá chegava daquela forma, olhava para ele na
camita e tentava sacar-lhe um sorriso e agora … apenas o vazio!
Não conseguiamos conter-nos e a Dra. Isabel nunca mais
aparecia o que inviabilizava que obtivessemos informações. Dei
por mim sentado a olhar para o chão, a deixar correr as lágrimas
livremente, estático, como se tudo estivesse perdido, como se
mais nada interessasse!
Realmente não valia a pena ficarmos por ali, até porque o
ambiente “por natureza”, já era suficientemente deprimente, com
a visão de outras crianças doentes, algumas delas terrívelmente
doentes! Voltámos a sair do Hospital e fomos para o Hotel pois a
mãe da Lígia deveria estar prestes a chegar de Ovar. Já no quarto
do hotel soubémos que o transplante se tinha finalmente
iniciado, já não posso precisar que horas eram, mas lembro-me
que desta vez tinhamos conseguido algumas informações, entre
elas, que foi dificil encontrar uma “veia boa” e que o Dr.
Emanuel já “em desespero” tinha-se socorrido do pescoço, mas
... dados exactos de como estava a correr o acto cirúrgico, isso
não sabíamos!
Nessa altura, pouco mais poderiamos fazer, a Lígia
agarrou-se a um Terço a rezar desenfreadamente e eu,
instintivamente agarrei a cruz que tenho na volta do pescoço e
continuei a minha “oração do costume”, isto durante umas três
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horas, até que, como não aguentávamos mais decidimos ir
novamente para os H.U.C..
Lá chegados, não conseguimos ver ninguém, nem saber
de nada até porque o Bloco era num local não acessível.
Estávamos no piso dos doentes hepáticos e que também
albergava a U.C.I., piso esse para onde o Vitinho iria após o
transplante.
De repende apareceu-nos o Dr. Bento mostrando surpresa
por encontrar-nos. Disse-nos que estava a acompanhar o outro
transplante, que não tinha informações sobre o nosso filho e
como não estava à espera de nos encontrar, não tinha procurado
saber. Todavia achava que estava a correr bem, isto apesar de
terem surgido dificuldades, nomeadamente uma grande
hemorragia que tinha sido eficazmente controlada. O Dr. Bento
ao dizer-nos isto, não nos descansou nem um pouco, antes pelo
contrário e também ele o deve ter percebido… pouco depois,
apareceu-nos alguém para explicar-nos qual era o ponto da
situação. Já não me lembro quem era, lembro-me apenas que nos
tentou tranquilizar, dizendo que tudo estava a correr bem, mas
que ainda faltava muito tempo até o transplante terminar.
Aconselhou-nos a voltar mais tarde, mas nunca antes das 18:00.
O que aconteceu a seguir, já não consigo recordar com
precisão, o que sei é que pouco tempo depois fomos novamente
para lá e ficámos “de plantão” à espera que o transplante
terminasse. Volta e meia passava um ou outro elemento “com ar”
de ter estado no bloco e íamos notando que as caras estavam
tranquilas e isso também nos dava alguma paz!!
Perto da 18:30 avisaram-nos que o Vitinho estava prestes
a subir e começámos a ver uma maior movimentação, os minutos
pareciam horas e o nosso filho nunca mais aparecia até que se
abriu a porta do elevador e lá estava ele, o nosso herói! A
fotografia não era propriamente entusiasmante, à excepção dos
semblantes alegres dos que o acompanham e do próprio Dr.
Emanuel que nos fez um rasgado sorriso e nos olhou bem nos
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olhos, com confiança e como se deve fazer, frontalmente, até
nos chegar à alma! Não precisou de falar, porque os olhos
disseram-nos tudo, o Vitinho coitadinho, tinha tubos enfiados
por todos os lados, nas narinas, na boca, em ambos os lados do
abdómen, nos braços, enfim, era um bébé pequenino no meio de
uma gigantesca parafernália de maquinetas, tubos, fios, alarmes,
etc, etc, etc.
Apetecia pegar-lhe e acarinhá-lo, mas ele estava sedado e
todo aquele aparato de equipamentos inviabilizava-o.
Permitiram-nos acompanhar o nosso filho até à U.C.I. e lá
pudemos assistir ao cuidado e ao carinho de todos os que o iam
tratando. Todos queriam retocar um tubo, verificar aquela
medida, conferir as gotas do soro, olhar bem para o oxímetro, ver
o batimento cardíaco, etc. Todos os que se debruçavam sobre o
nosso filho, olhavam-no com admiração e se nós os pais lá não
estivessemos, talvez se atrevessem mesmo a beijá-lo, porque o
calor que emanavam dos corações era por demais evidente.
O Vitinho sentiu isso, sentiu a força que todos nós lhe
demos e agarrou-se à vida e lutou por ela até ao auge das suas
forças.
Nos filmes animados de contos de fadas, assistimos
normalmente à transformação dos personagens com cores belas,
suaves, efeitos de luzes, o brilho do pó das estrelas e uma
qualquer varinha de condão que nos vai mostrando a magia do
sonho que nos encanta a imaginação.
Era esse o sonho que estávamos a viver, o nosso filho
estava calmamente a descer das estrelas e a regressar para o
nosso seio abençoado por uma fada celestial, muito bonita e
sorridente e que nos entregava a sua mão, com o respeito no
olhar, num olhar que nos dizia que o tínhamos merecido!
A esclerótica dos olhos lentamente ia tornando-se branca,
branca como nunca a tinhamos visto! A cor da pele também
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estava diferente e nem valia a pena perguntar aos médicos se o
enxerto tinha “arrancado”, pois essa constatação era evidente.
Ainda assim não conseguiamos resistir a perguntá-lo pois
sabia-nos muito bem ouvir a resposta.
Quando o Vitinho emitiu alguns sons, parecia um gatinho
que não conseguia miar, pois os gemidos que lhe saiam da
garganta entubada eram frágeis e delicados. O ‘estado crítico’
obrigava a que permanecesse sedado, mas é verdade que apesar
do cenário “assustador” sentiamo-nos agora cheios de força,
entusiasmados e com a coragem rejuvenescida.
Todos aqueles profissionais maravilharam-nos,
é deles o
milagre
.
Ficámos na UCI todo o tempo que conseguimos, até que
nos aconselharam a ir jantar e dormir.
Há muito tempo que eu e a Lígia não jantávamos juntos
fora do ambiente hospitalar. Lá fomos a um restaurante e esse
jantar, esse sim, já nos soube a alguma coisa.
Depois fomos para o Hotel, dormir para depressa
regressar para ao pé do nosso filho.
Ao longe sentiamos o olhar das nossas filhas, quase
parecia que uma força invisivel em forma de nuvem pairava
sobre nós, unindo-nos. Estávamos todos juntos em coração,
embora longe uns dos outros!
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