sexta-feira, 25 de maio de 2012

Cap. VI - O dia do Transplante

CAPÍTULO VI

O DIA DO TRANSPLANTE


Carta a DEUS – 1

Bom dia Deus,

Sei o quanto andas ocupado com a turbulência dos

homens, mas por favor escuta, olha para este ser pequenino que

criaste à tua imagem, vê como sofre e opera o teu milagre. Sei

que te peço muito DEUS, mas sabes o quanto ele é importante

para nós e o que tem ainda para nos ensinar.

Ilumina as mãos dos homens e traz-lhe a saúde que tanto

precisa.

Obrigado Deus por me escutares, estou mais atenta e agora

sei o quanto andava distraída das coisas importantes da vida.

Obrigado Deus

Lígia,

Hospital Pediátrico

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No dia 23 ou 24 de Julho de 2004, não sei precisar, ficou

decidido que o “transplante com dador vivo” seria feito na

semana seguinte, em dia ainda a confirmar. No Domingo, dia

25/07/2004, ao principio da noite, estávamos numa amena

cavaqueira com uma enfermeira, isto já com o Vitinho e a Lígia

no inicio dos preparativos, quando outra enfermeira entrou,

olhou-nos timidamente e chamou a colega. Ambas

comunicaram-nos ‘cautelosamente’ para estarmos preparados,

porque “parecia” que havia um dador compatível!

Nesse momento, algo aconteceu que mexeu com as nossas

emoções, ficámos em meditação e a Dra. Isabel veio conversar

connosco! Eu fiquei mudo, sem reacção, e a Lígia ficou muito

emocionada porque, agora que as coisas já estavam programadas,

ela queria continuar a ser a dadora, mas obviamente que tal já não

seria possível! Primeiro porque, só se é dadora uma vez na vida e

assim ela ficaria disponivel para outra altura se tal se viesse a

mostrar necessário, depois porque qualquer cirurgia envolveria

riscos e o facto de termos mais duas filhas inibia-nos sequer de

questionar a decisão. Aliás dadas as características do dador, que

por respeito da sua memória não as descrevo, seria absurdo não

aceitar esse fígado, e mesmo que o fizessemos, garantidamente

que ninguém nos ouviria! Para além de tudo isto, também eu me

opunha, dadas as circunstancias, obviamente, seria uma idiotice

colocar a vida da Lígia em perigo!

Mas a reacção da Lígia era natural e compreensível! Ela

sentia-se um pouco responsável pela insuficiência do Vitinho e por

isso, se a medicina permitia corrigir “o erro”, então parecia-lhe

imperioso que fosse ela a fazê-lo!

O dia que estávamos quase a iniciar seria sem sombra de

dúvidas o dia mais longo das nossas vidas. As horas passavam

muito lentamente e nesse dia o Hospital Pediátrico estava

estranhamente calmo! Entretanto juntou-se novamente a nós a Ana

Paula que fez questão de nos acompanhar nessa fase mais crítica.

Cerca das 2:00 chamaram a ambulância que iria levar a

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Lígia e o Vitinho do Pediátrico até aos H.U.C. Acompanhei-os de

carro, mais a Ana Paula e na ambulância, acompanhou-os a

Enfermeira Helena que dificilmente conseguia suster as lágrimas.

Nos H.U.C. a tensão era evidente e fomos conduzidos ao

“bloco”. A contrastar esse sentimento, uma cara simpática e

sorridente recebeu-nos e perguntou-nos se um de nós queria

acompanhar o Vitinho lá dentro. A Lígia entrou e ao vê-los

entrar, senti o meu coração apertar, apertar, apertar… quase

parecia que estávamos a pairar sobre um precipicio que nos

sugava para o infinito.

Fiquei eu e a Ana Paula naquele sítio frio, desagradável e

esperámos o regresso da Lígia. Um bom pedaço depois ouvimos

umas portas a bater, um estrondo, um som metálico e de repente

apareceu-nos uma maca com um corpo todo coberto por um

lençol. Gelámos, eu e a Ana Paula, aquele corpo era o corpo do

dador. Fiquei sem palavras e olhei com respeito para o vulto

desse alguém! O vazio da morte na esperança da vida, lágrimas

que correm com fundamentos opostos, nas nossas faces e nas dos

seus entes-queridos!

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