sábado, 19 de maio de 2012

Capítulo V

À ESPERA DE UM FÍGADO
O fígado, esse tardava! O nosso filho estava em S.O.S., a
sua degradação era galopante e começámos a ter consciência do
que era “um estado terminal”. A Dra. Isabel mandou-nos fazer
um electroencefalograma, os resultados eram bons, mandou
fazer outra ecografia ao coração porque a última tinha detectado
qualquer coisa que depois não se chegou a confirmar! Era exame
aqui, exame acolá, a rotina era penosa e desgastante, quase
parecia que estávamos no interior de uma esfera de céu azul que
ia sendo consumida pelo escuro tenebroso da penumbra que a
envolvia, asfixiando-nos muito lentamente.
Quando, noite dentro, regressava a casa, dava por mim a
não querer ouvir as notícias, pois quase tinha medo que um
subconsciente diabólico desejasse que alguma desgraça
acontecesse, não queria saber se tinha ocorrido algum acidente,
não queria procurar eventuais dadores entre as vítimas fosse do
que fosse, era uma luta permanente entre sentimentos e
paradoxos e eu …“fugia” de tudo!
Durante o sono também era assaltado por sentimentos
contraditórios, mistos de confusões, fantasmas e por vezes
acordava desorientado.
39

A NOITE
A noite chega
Não pára na porta
Entra
Entra e senta-se à mesa
Deita no chão o casaco
Sobre a mesa, pousa os braços
E aguarda
Aguarda pelos esfomeados
Pelos perdidos
Pelos temerosos
E deixa correr as horas…
As horas da noite são longas
Os ponteiros derretem nos segundos
Os minutos são longos
A noite instala-se na sala,
No quarto, no mais
Recôndito ponto da mente
Escurece a esperança
Endurece a raiva
Enfraquece a coragem
Mina os projectos
40
De noite, a noite reina
Domina, dança e brinca
Brinca com as fragilidades
Goza com os medos
E amordaça a aurora
Um raio de luz estala o cenário
A noite levanta-se
Apanha o casaco, recolhe as horas
A Aurora geme, faz saltar a mordaça
A noite afasta-se
Suspira
Até mais logo
Lígia
Hospital Pediátrico de Coimbra
41
Mas regressemos ao problema fulcral. Na reunião
anteriormente referida, o facto do Dr. Emanuel ter mostrado
alguma resistência, deixou-nos literalmente em pânico! Não
queríamos mostrar o nosso desespero mas tivemos mesmo de
convencer o Dr. Emanuel! E foi o que aconteceu, ele percebeu a
nossa determinação e como nós, também acreditou que as coisas
só poderiam correr bem. O Dr. Emanuel passou de um
posicionamento cauteloso, algo distante, para o apoio
entusiástico e pouco tempo depois saiu na sua moto, foi buscar
uma documentação para assinarmos, marcou uma ressonância,
um TAC com contraste e ‘já não sei mais o quê’, tudo isto ao
final da tarde e nesse mesmo dia, à meia-noite estávamos a entrar
numa clínica para fazer todos os exames e às ‘duas e tal’ da
manhã regressávamos ao Pediátrico com a Lígia “meia grogue”
e muito bem-disposta, com a informação reconfortante de que
aparentemente “deveria ser” uma “excelente dadora”!
No dia seguinte fomos aos H.U.C. (5) conhecer o
ambiente e conversar com o Dr. Bento, anestesista que
necessitava de alguns dados da Lígia.
Vimos a enfermaria e pela primeira vez tivemos contacto
com outros pacientes que aguardavam transplante, embora estes
fossem adultos, estivemos na UCI (6) (porque não tinha nenhum
paciente nessa altura), ou seja, o Dr. Bento recebeu-nos de forma
superior, explicou-nos tudo direitinho, descreveu a equipa,
conseguiu inspirar-nos ainda mais confiança e ficámos a ter uma
noção de como funcionava esta vasta equipa!
Tanto na noite anterior, como nesta tarde da visita aos
H.U.C., tivemos a preciosa ajuda de uma querida amiga, a Ana
Paula. A Lígia telefonou-lhe a explicar que ia ser submetida a
exames para aferir se poderia ser dadora e que estávamos com o
problema de ter de deixar o Vitinho sozinho na enfermaria! Ela
imediatamente meteu-se no carro e veio do Porto para Coimbra.
42
Tomou conta dele até chegarmos e já de madrugada regressou ao
Porto. No dia seguinte, lá estava ela novamente para nos permitir
ir aos H.U.C.. Entreteve o Vitinho a ver o Spirit da
“DreamWorks” que ele já tinha visto umas quinhentas vezes,
mas que adorava, e ela também adorou… e até chorou! Mais
tarde ainda brincámos um pouco com a situação, a Ana Paula era
sem dúvida uma excelente companheira para acompanhar o
Vitinho nessas incursões emocionantes pelos filmes de animação
cheios de dramatismos e maldades dos “homens maus”!
Regressemos à visita aos H.U.C. . A partir daqui o
transplante poderia fazer-se a qualquer altura e nunca mais
pensámos no SOS, nem nos dadores, nem em nada! Ficámos
simplesmente à espera que as coisas acontecessem!
Uma certa “paz de espírito” perseguia-nos e
tranquilizava-nos. Tínhamos dado o passo certo e tomado a
opção correcta. Nas nossas conversas nunca surgiam dúvidas ou
medos, realmente os dois estávamos bem sintonizados e
fortemente unidos. Apesar da nossa fragilidade emocional,
sentíamo-nos fortes para encarar essa batalha e começámos logo
a fazer projectos de como conciliar tudo com as miúdas, etc. Era
evidente que no período inicial as coisas não seriam fáceis! A
Lígia e o Vitinho teriam de ser separados, ela ficaria nos H.U.C.
e ele acabaria por regressar ao Pediátrico, mas nem tudo seria
complicado, pois tínhamos a Ana Paula, a minha Mãe também
ajudaria, a minha Sogra, e a Lígia… finalmente poderia dormir
numa cama normal!
43

Sem comentários:

Enviar um comentário