CAPÍTULO XI
UMA CRIANÇA COMO AS OUTRAS
Carta a DEUS – 3
Bom dia Deus,
Cada dia louvo a tua aurora e a luz que imanas na minha
vida.
Eu sei que olhas por cada um como se fossemos
insubstituíveis quando apenas tu o és, mas sinto-me eternamente
grata por me teres dado a mão quando tudo desabava, mesmo
que em lapsos de momentos de pouca clarividência, duvidei da
tua protecção, não te posso nem quero mentir, fraquejei pelo
caminho, mas mesmo assim, levantaste-me e segui as tuas
pegadas. Ainda bem!
Os meus dias são de gratidão e de imensa alegria,
inundada pelo riso dos meus filhos, pelas suas birras, pelo olhar
do meu amor e de todos os que fazem parte da minha vida.
Obrigado Deus
Lígia
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A fase inicial pós-transplante caracterizou-se por uma
protecção apertada do nosso filho. Depois de tudo o que
passámos, nada poderia falhar, não poderiamos correr riscos,
nem cometer erros! Explicávamos às pessoas isso mesmo e de
uma maneira geral percebiam, mas nem todas agiam como
esperávamos!
Os primeiros três meses, são os mais perigosos, por causa
do risco de rejeição ser mais elevado. Depois, mesmo que haja
maior tolerância, ainda assim temos de ser prudentes e o contacto
com pessoas doentes e com animais deve ser radicalmente
evitado.
Nós sempre tivemos animais em casa, nessa altura
tínhamos o Papuça (um cocker), a Mariana e a Lua (duas gatas).
O Papuça emigrou temporáriamente para casa dos meus pais e
as gatas deixaram de dormir dentro de casa. O facto de vivermos
numa moradia permitiu resolver este problema sem grandes
dificuldades e sem que os bichos fossem afectados.
Para além disso, evitávamos ter muitas pessoas em casa,
evitávamos o contacto com crianças, ou seja, tentávamos evitar
tudo aquilo que pudesse ser um factor de risco. As crianças, só
por si, eram um factor de risco “agravante” e aconteceu várias
vezes termos festas de aniversário, ou sermos convidados para
festas e “volta e meia” uma criança aparecer com febre, ou
vomitar, ou tinha uma diarreia súbita, ou apareciam com umas
borbulhas que os pais não tinham valorizado, etc! Quando tal
acontecia, ficávamos aflitos e percebiamos que nem sempre os
pais entendiam a razão da nossa preocupação, aliás isto acontecia
muitas vezes com a comida! Quase apetecia colocar um aviso no
boné, “não me ofereça comida”. É que, várias vezes o Vitinho
apareceu a comer bolo, a comer sugus, a comer uma “bucha” de
pão de outro menino qualquer, a chupar um chupa-chupa e tudo
porque nos distraiamos uma fracção de segundos!! Isto com
pessoas desconhecidas, porque com as conhecidas, era a tirania
do “só um bocadinho”!
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As crianças transplantadas têm uma certa propensão para
sofrerem diversas intolerâncias alimentares. O cruzamento entre
o FK e alguns alimentos provoca reacções adversas frequentes
visiveis nas diarreias e na queilite bilateral (cantos dos lábios
rosados e com pequenas fissuras). Em casos extremos tem-se
mesmo de alterar o imunossupressor, porque as fissuras tornam-se
profundas e sangram, além de que as faces internas das
bochechas incham e os miúdos distraidamente, trincam-se! Isto
conciliado com as fezes líquidas, provoca um grande
desconforto, agora imagine-se nós com um cuidado extremo na
dieta, a controlar todos os alimentos para tentar perceber quais os
que eram nocivos e aparece-nos o nosso filho a comer um bolo,
ou com duas ou três bolachas de chocolate, vindas sabe-se lá de
onde! É que o chocolate era precisamente um dos alimentos que
mais reacções gerava e o ovo, esse, esteve proibido até aos três
anos!! Como poderiamos encarar um pai ou uma mãe, que sem
nos questionar préviamente, ofereciam uma coisa ao nosso filho
que lhe ia fazer mal! Nunca ofereça nada a uma criança
desconhecida, pois ela pode sofrer de uma qualquer intolerância
alimentar, pode ser celíaca, pode ser alérgica, etc!
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Numa das consultas, a Dra. Isabel tínha-nos dado
instruções para não deixarmos que ele ingerisse nada com ovo,
nada, absolutamente nada, nem uma simples bolacha maria
(onde a presença de ovo é reduzida). Nessa fase, o Vitinho
andava bem, mas as fezes teimavam em permanecer
“escangalhadas” e por isso andávamos preocupados. Um dia,
porque já não saiamos em família há uns tempos, fomos a um
centro comercial e o Vitinho apareceu-nos a comer qualquer
coisa que tinha ovo, isso aconteceu quando a Lígia estava numa
loja qualquer e eu estava a tomar conta dele. A Lígia chegou à
minha beira, viu-o a mastigar “a coisa” e logo questionou-me
fazendo um semblante carregado, quase como a perguntar “estás
maluco, como é que lhe foste dar isto?!” Eu desesperado olhei à
volta, vi uma mãe que estava a dar uns doces à filha e era ela que
provavelmente tinha dado qualquer coisa ao Vitinho!! Ficámos
de tal forma enervados, que saimos logo dali, e eu fui a vociferar
meia dúzia de pragas, pois apeteceu-me perguntar à senhora se
achava que o meu filho era um macaco a quem se davam
bananas?! Quantas vezes nos dirigimos às pessoas e dissemos,
“obrigado, mas ele é alérgico”! Até em casa a história repetia-se,
chegávamos, olhávamos para os lábios “rebentados” e
comentávamos, o Vitinho comeu qualquer coisa que lhe fez
mal?! Respondia-nos a minha Mãe, ou o meu Pai, ou a Ilda,
“não, não comeu nada, foi só uma ‘goma’ e porque ele insistiu
muito e garantiu que o Pai disse que ele podia comer gomas”!
Mas o tempo foi passando e as coisas melhoraram.
Resumidamente e para que se perceba a cronologia dos factos,
logo após o transplante, deixaram de haver quaisquer limitações
à ingestão do proteinas. O mesmo não se diga dos frutos
vermelhos (incluindo o tomate), guloseimas e refrigerantes que
estiveram proibidos durante bastante tempo. Nesta fase a Lígia
especializou-se em inventar bolos sem ovos e sempre que iamos
a qualquer aniversário, ou sempre que tinhamos refeições com
sobremesas melhoradas, o nosso filho tinha o seu próprio bolo,
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que muitas vezes também era o nosso, pois desta forma
partilhávamos todos o mesmo bolo… diferente. Uns meses
depois o Vitinho passou a comer refeições com estrugidos com
tomate, depois chegou a vez das incursões aos frutos vermelhos,
especialmente morangos e mais tarde, as cerejas. Depois vieram
os ovos e pronto, estavam os alimentos todos introduzidos na
dieta alimentar!
Apesar de agora tudo estar normalizado, permanecem
alguns resquicios dos primeiros três anos de restrições, é que ele
agora é um guloso e temos de o controlar, pois de contrário tem
tendência a cair em exageros, por exemplo, quando bebe coca-
-cola está sempre a bebericar e ainda hoje achamos que não a
tolera lá muito bem!
Algumas coisas continuam “semi-proibidas”, é o caso
dos cogumelos que ele tanto adora, mas que lhe fazem mal, é o
caso do chocolate, da coca-cola, do ice-tea e de ovos crus ou
quase crus. Os ovos, estão condicionados apenas devido ao
perigo das salmonelas e por isso, nunca lhe damos ovos
estrelados mal passados de forma a poder ‘molhar’ a gema. Ele
até poderia reagir bem, mas não vale a pena arriscar!
Outros alimentos que estão proibidos é o caso dos frutos
sêcos e das guloseimas carregadas de corantes ou aquelas
“porcarias” cheias de sal e corantes ‘côr de lagosta’ que os
miúdos adoram e que eu acho intragável!
Ainda dentro do problema das intolerâncias alimentares,
não nos podemos esquecer que o Vitinho era uma criança como
as outras, também tinha as suas manhas e cometia os seus
pecados, por vezes ás escondidas, outras por nos vencer pelo
cansaço, outras ainda porque faz parte deste jogo que é a vida,
manipular e sermos manipulados!
Tudo isto refelectia-se no nosso dia a dia e quase como
um efeito colateral!
E haviam outros “efeitos colaterais”… fora do habitual!
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Mas estes já de outra índole, mais do foro afectivo e menos
racionais. As intolerancias alimentares ainda são relativamente
frequentes, independentemente do transplante,
independentemente das maleitas, mas agora o que já não é muito
comum, é o nosso filho dormir connosco, diáriamente, na nossa
cama e ser amamentado para lá dos cinco anos de idade!
Todos os nossos filhos foram muito “agarrados” à mãe e
no caso do Vitinho, o transplante provocou uma forte união entre
os dois, nos momentos maus, o carinho preferido era fazer da
mama da mãe uma xupeta. A Lígia queria compensá-lo do
sofrimento por que passou e “carburava” em função das
necessidades. Sempre que o Vitinho estava em situações
complicadas ela tinha “subidas de leite” e a coisa funcionava na
perfeição, era o lado biológico a funcionar em pleno! A Lígia ia
(e vai) frequentemente ao estrangeiro por razões profissionais e
o leite nunca secou, mesmo nas viagens mais longas, como uma
a Las Vegas, mal chegou a casa o ritmo biológico retomou o
ciclo normal. Só muito recentemente a Lígia provocou o
desquite, porque começou a achar que já não era saudável nem
para ela, nem para ele, e o próprio Vitinho consciencializou-se
que os meninos de 5 anos, não mamam e que era uma vergonha
se na escola o viessem a descobrir!
Quanto ao dormir connosco, a separação foi feita apenas
há uns dias atrás. Pela manhã, o Vitinho acaba por vir parar à
nossa cama para ‘acabar de acordar’, mas já foi um grande passo
ter aceite dormir sózinho.
Da mesma forma que cada uma das irmãs, também ele
agora tem um quarto, o seu quarto no verdadeiro sentido!
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