quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Regressemos ao livro - peço desculpa pela longa ausência!


CAPÍTULO XII
 
DESCONTRAÍDOS


O Vitinho tem clara noção que, em bébé, teve um
qualquer problema grave e que isso lhe deixou aquela marca que
lhe cruza a parte superior do abdómen. Foram dois cortes no
mesmo sítio, separados por um intervalo de sete meses e com
suturas igualmente perfeitas. Hoje quem vê a “xicatiz” (como o
nosso filhote carinhosamente lhe chama) não se apercebe da
duplicação! Honra ao “costureiro” pela sua destreza!
Só uma vez o Vitinho me perguntou directamente, o que
tinham feito ao seu fígado. Respondi-lhe, explicando-lhe o que
aconteceu, que quando ele era pequenino o fígado estava a
funcionar mal e que por isso teve de ser trocado por outro que
funcionava bem. Para ele tudo se resumiu a tirar uma peça
estragada e colocar outra nova! Tudo lhe pareceu tão simples e
evidente que nunca mais me tocou no assunto. Sinceramente não
sei se com a Lígia houve alguma abordagem idêntica, mas penso
que não.
Como já referi anteriormente, nos momentos mais
críticos dos internamentos, sentia-me triste e até revoltado por
não estarmos em Ibiza conforme tínhamos programado e
lembrava-me frequentemente, também, o quão bom seria se da
mesma forma que outros pais e outros meninos, estivessemos
todos em férias, a ver golfinhos ou a ir à feira medieval na Vila
da Feira, etc, etc.


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Por tudo isto, fizemos questão que, depois de corrido um
tempo razoável, as primeiras férias fora de Portugal fossem em
Ibiza. Antes disso porém, iriamos ao Algarve, visitariamos o
Zoomarine e tentariamos compensar todos os segundos passados
nos hospitais.
Estávamos ávidos de “compensações” mas as mesmas só
começariam depois de seis meses completos sobre a data do
transplante.
Era espectacular podermos sair com o nosso filho!
Conforme o tínhamos pensado, no primeiro ano de férias
fomos para o Algarve e visitámos o Zoomarine. Quando os
golfinhos começaram a sua exibição as lágrimas começaram a
escorrer-me pela face, era incontrolável.
Estávamos juntos, estávamos felizes. Quando fomos pela
primeira vez à feira medieval, em “Terras de Stª Maria” não
fiquei tão emocionado, mas ali, não sei porquê, ‘tocou-me’
especialmente! Olhava para ele e vinham-me as memórias dos
momentos difíceis, agora sim, as coisas estavam a retomar a
normalidade e já passávamos por uma família normalissima.
Houveram vários momentos desses e um deles foi a ida
do nosso filhote, com as irmãs, no dia das bruxas, ao habitual
peditório das “doçuras e travessuras”.
Era a primeira vez e não o queriamos deixar ir, só que ele
ao ver as irmãs disfarçadas, insistiu, insistiu, insistiu e nós
ficámos um pouco desarmados perante tanto entusiasmo! Ainda
por cima, esse ano, haviam muitas “adesões” dos miúdos da
vizinhança e que se juntaram todos em frente à nossa casa!
Como a noite não estava muito fria, deixámo-lo ir e o traje
limitou-se a um chapéu de bruxo!
Ora, a coisa resultou em pleno, pois depressa apanhou o
jeito e em pouco tempo encheu o saco de guloseimas. Ele era o
mais agraciado pela generosidade das suas vítimas, corria e
corria de porta em porta, ele… e a mãe, porque esta ia vigiando
tudo à distancia, embora meio escondida para passar

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despercebida de forma a não interferir “na acção”!
Quando todos se reuniram para juntar o espólio e dividi-lo
irmãmente, era realmente um “espólio de categoria”, até uma
caixa de chocolates lhes deram. Toda a criançada estava um
pouco deslumbrada com o resultado final, o mesmo tinha
excedido largamente as espectativas. Todos foram bem
‘atestados’ para casa e os próximos dias seriam de verdadeiro
festim, quer das crianças quer das suas cáries!

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ilustração por Inês

A ida a Ibiza era outra situação que sentiamos
necessidade de redimir. Não só queria mostrar as águas de Ibiza
ao nosso filhote, como queria ir agradecer pessoalmente ao
simpático José Luis, o responsável por um conjunto de
apartamentos em Cala Vadella e que ao saber o que nos tinha
acontecido devolveu-nos a verba que já tinha sido paga pelo
aluguer (que não se concretizou e que tinha sido firmado uns
meses antes do transplante).
Conhecemos Ibiza em 1997 e foram sem dúvida as férias
mais espectaculares que alguma vez tínhamos tido. Aconteceram
na segunda quinzena de Agosto e ficámos deslumbrados com
uma ilha que nos pareceu mágica. Ibiza é conhecida pela loucura
“sui-generis” que caracteriza a “sua noite” e que é imitada um
pouco por todo o lado. Para nós, Ibiza não significa nada disso,
para nós é a ilha ideal para umas férias calmas, em família, com
praias deslubrantes como Cala Vadella, Cala Tarida, Benirras,
Cala Conta e ali pertinho, as de outra ilha maravilhosa que dá
pelo nome de Formentera.


Onde fica a ilha do sonho?
Para lá do horizonte, para lá do amanhã.
Queres vir comigo? Eu levo-te
Não esperes pelo próximo barqueiro,
que é lento e preguiçoso!
Anda entra na minha nau, que te levarei a bom porto
Ainda a tormenta no mar,
não a poderei evitar mas as velas levantarei
A âncora da minha vontade e o vento da boa esperança
Vai ajudar-me a levar-te comigo para lá do horizonte
Para a ilha do sonho!
Anda, vem comigo…
Lígia

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CAPÍTULO XIII


PERSPECTIVAS

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ilustração por Inês

O medo
O medo sem medo de si
Quando estamos bem, dá medo,
Medo de deixar de estar
Medo que tudo vire
Medo do que vem
Medo do que será
Vive do futuro, do será que…
No presente não há medo
Há fúria, raiva, amor, alegria, tristeza
Mas medo, só do que não sabes
Se…
E se…
Talvez…
E Se…
Se…
Matar o medo com o presente
Para que não carregues a mágoa do passado
Batalhar para afogar a tristeza
Nadar para emergir da raiva
Submergir para respirar o sonho
Libertar a esperança
Sentir o nada
O medo, silencioso, corrosivo
Que impede o gozo do momento
Antecipa a dor
Recalca a dura vida
Estrangula o teu olhar
Não penses
Não sintas
Não deixes que o teu instinto o fareje…
Um momento sem medo!
Lígia

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Não acredito que alguma vez, nós os pais, descansemos
com a ilusão de que o nosso filho “esteja curado”! Ora bem, em
boa verdade ele não está doente, mas como já o disse mais atrás,
ele toma uma determinada medicação que o perseguirá toda a
vida. O facto dessa medicação ser vitalícia, lembra-nos
diáriamente que o nosso filho é realmente um doente crónico.
Os transplantes da forma como funcionam hoje em dia,
são verdadeiros milagres que se vão operando diáriamente e que
ainda há não muito tempo pareciam impossíveis.
A medicina já nos habituou a estes milagres e vai
continuar a fazê-lo, seguramente, cada vez melhor e cada vez de
forma mais extraordinária.
Já sabemos que através das células estaminais (8) é
possivel criar um fígado humano de alguns milimetros. Não deve
estar muito longe o dia em que a ciência nos colocará perante
esta e outras soluções que permitirão reduzir substancialmente os
inconvenientes da imunossupressão.
Quando fomos colocados perante esta possibilidade, a de
se recolher o sangue do cordão umbilical, isto apesar da
controvérsia que se gerou então, pois chegámos a ouvir alguns
médicos criticarem a utilidade “da coisa” , achámos que o
deviamos fazer e fizémo-lo através de uma conhecida empresa
de Cantanhede, a pioneira em Portugal e a única nessa altura! A
doença cujo fantasma nos fez aceitar a recolha do sangue, foi a
Leucemia, esta era o terror que nos assustava a nós e a todos os
outros pais que do mesmo modo também adquiriram o kit.
Hoje, apenas cinco anos e alguns meses depois, já
sabemos que a utilidade desse armazenamento das células
estaminais poderá ter um destino mais alargado. Os progressos
que se têm anunciado são deveras surpreendentes e fazem-nos
acreditar num futuro risonho cheio de descobertas fantásticas.
Outra situação que me suscitou especial curiosidade foi o
facto de uma transplantada, creio que na Austrália, ter deixado de

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tomar imunossupressores porque aparentemente ‘adquiriu’ o
sistema imunitário do dador! Se bem percebi a notícia que li nos
jornais e tentando descrever a situação de forma muito simples,
o que aconteceu é que sem que se perceba como, o sistema
imunitário da receptora adaptou-se ao novo orgão e passou a
reconhecê-lo, isto é, sem que os sistemas naturais de defesa
fossem accionados! A ser verdade, é quase milagroso e haverá
provavelmente uma explicação lógica, o problema é que
ninguém neste momento a consegue dar!
Esta notícia, a nós pais, dá-nos uma enorme esperança
que em breve se conseguirão formas menos agressivas de se
controlar o sistema imunológico do receptor.
Algumas experiências têm sido feitas com este propósito,
o de “moldar” o sistema imunológico do receptor, mas
desconheço completamente o sucesso das mesmas, sei apenas
que assentam essencialmente em dois pressupostos:
– o transplante principal, que é o transplante hepático;
– o transplante secundário, o da medula do dador de
forma que o sistema do receptor “se molde” e interprete aquele
orgão como sendo seu!
Não deverá ser assim tão simples, mas a ideia base parece
boa!
Aguardo ansiosamente por novidades, embora no caso do
meu filho e de todos os receptores de um dador-cadáver, já
saibamos que teremos de ir mais além, pois nunca será possível
efectuar-se um transplante de medula.

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Carta a DEUS – 4

Olá Deus,
Cada hora que passa sinto a tua presença constante e o teu
olhar protector sobre o meu filho, sei que me concedeste uma
graça que não conseguirei louvar suficientemente, por mais que
a apregoe para o resto da minha vida. Direi a todos como a tua
mão divina interveio, o quanto o teu amor se manifestou. Em
cada dia nas minhas orações o Teu nome será louvado e o meu
pensamento estará contigo.
Obrigado Deus.
Lígia

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ilustração por Inês

Versão a carvão do original de Filippo Lippi
(Virgem com Menino e Anjos)
– por Inês

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