CAPÍTULO XIV
MEDICINA, DIREITO E FÉ
Carta a DEUS – 5
Sabes Deus,
quando fiz a minha caminhada de
introspecção,
de gratidão e oração,
foram dias de alegria interior,
como nunca pensei que pudessem ser tão intensos e
enriquecedores,
quando cheguei ao porto de destino,
e entrei na
área da basílica a Senhora viu-me,
senti-o e apesar do meu
pequeno sacrifício,
senti o seu sorriso de alento.
Lígia
Medicina e Fé quase parecem realidades
“concorrenciais” e completamente autónomas. Se a fé curasse,
então não seria necessário recorrer à medicina e se a medicina
tudo entendesse, talvez também não fosse necessário apelar à fé
e a um ser superior que aparentemente tem andado distraído! O
Direito, esse, por vezes também se mete nesta discussão, quando
deveria estar quietinho, num canto, pois aqui o seu papel deveria
ser igual ao do “bom árbitro” de futebol, isto é, tentar passar
despercebido! É o que acontece em determinadas realidades
ditas “fracturantes” como o aborto e a eutanásia. Não caio no
erro de dizer que estes são problemas da consciência de cada um,
pois se no caso da eutanásia, isso até poderá ser verdade, no do
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aborto, não! Nunca o aborto poderá ser um problema de
consciência de alguém!
Sem me querer meter nesta discussão e que em Portugal
de certa maneira já se extinguiu, pois ao que parece só existiram
referendos à lei do aborto, enquanto o “não” prevaleceu e mesmo
não se tendo obtido um “sim” vinculativo, não vislumbro no
horizonte coragem política para se pegar novamente no assunto!
A única verdadeira conclusão que se tira de tudo isto, é que o
referendo é anti-democrático porque apenas serve para se
conseguir uma decisão num determinado sentido (veja-se o que
vai acontecer agora na Irlanda com o tratado de Lisboa!). Ou
seja, vão-se repetindo os referendos até se conseguir a resposta
desejada….depois, o assunto morre!
Decidir sobre a vida, é uma decisão que não nos pertence,
ou pelo menos, não deveria pertencer!
O processo do nosso filho colocou-nos perante esta
realidade de uma forma brutal!
Mas provavelmente esta reacção é a “normal”. Imagine-se
outro exemplo, como reagiria um doente terminal ao assistir ao
suicídio de alguém, saudável!
O sentimento mais nobre da nossa espécie é o amor, logo
ninguém se deveria suicidar, por amor aos seus e mesmo também
por amor àqueles seus familiares próximos que já faleceram. Da
mesma forma, ninguém deveria abortar, pois o amor por esse ser
pequenino e indefeso deveria aquecer os corações de quem o
concebeu! Tudo se resume ao amor e foi por amor que lutámos
pelo nosso filho, que nos agarrámos a ‘tudo o que nos
estendiam’, até finalmente conseguirmos encontrar “a” solução!
Um dia estávamos desesperados no Hospital Pediátrico e
conhecemos uma mãe que tinha passado por um processo
idêntico. Ela contou-nos a sua história muito resumidamente,
porque achou que o importante era essencialmente o fim da
história e citando mais ou menos as suas palavras, “quando
percebi que havia uma alternativa, reparei, mas… afinal há uma
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alternativa e a partir daí não quis saber de mais nada, pois
agarrei-me à esperança dessa solução com todas as minhas
forças e ignorei tudo o resto! Havia mesmo uma solução, era o
transplante hepático e isso chegava-me! Pensar nos perigos,
nisto e naquilo, agora já não interessava. Eu já tinha encontrado
um caminho e tinha de acreditar nele.”
Fez-nos bem ouvir isto e aos poucos também nós
interiorizámos esta ideia!
Vendo agora o problema noutra perspectiva, a do
“potencial dador”, eu como todos os outros, também já me
questionei se queria ou não sê-lo, mas isto, muito antes de ter
passado por todo este calvário. Hoje em dia, se tivesse dúvidas,
já estariam esclarecidas! A vida deu-me a resposta da forma mais
cruel, isto é, colocando-me um filho sob esse cenário.
Hoje vejo tudo isto com outra naturalidade e se algo me
acontecer, seria realmente um orgulho poder salvar a vida de
alguém, por isso os meus órgãos poderão ser livremente
utilizados para este fim.
Quando disse “que nos agarrávamos a tudo o que nos
estendiam” digo, tudo mesmo!
Nunca fui uma pessoa de muita fé, aliás sempre encarei
Deus com respeito, mas sem grande devoção, digamos que
respeitei sempre a parte “boa” da fé católica, naquilo que se
confunde com a Cristã! No entanto, continuo crítico de algo que
me parece fora deste contexto, é por exemplo, o que acontece
com o grande negócio que se tornou Fátima, do luxo que rodeia
o Vaticano, etc., etc.!
Se Jesus Cristo descesse à terra e tentasse visitar o Santo
Padre talvez não o conseguisse! Seria irónico, mas imagine-se o
ridículo, como conseguiria Jesus Cristo chegar até ao Papa? Não
conseguiria, de certeza absoluta! E como reagiria Ele ao ver tanta
opulência, o luxo dos Cardeais, a “nomenklatura” da Santa Sé,
etc, etc?!! Já S. Francisco de Assis conviveu mal com esta
realidade, mas… afinal nada mudou desde então! O contraste
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absurdo entre a fé verdadeiramente humilde e despojada de tudo
e a face visível da Igreja Católica, pelo menos aquela que nos é
dada a conhecer pela própria igreja, é diferente “como a água do
vinho” da vida de Jesus Cristo! São realidades que não se tocam!
E como fica o Papa no meio de tudo isto? Não sei, mas
no caso de João Paulo II, sobrou-nos uma grande estima e
consideração pela sua memória! O que está errado é que todos
temos uma visão positiva do Papa e não conseguimos ter a
mesma visão da Igreja.
Quanto ao que não se explica, à Fé, é verdade que na
“hora H” agarrámo-nos a ela, como a última “tábua de
salvação”! Mas no desespero o que é que podemos fazer, temos
necessidade de acreditar em algo! Temos de acreditar… e juntar
a ciência ao divino, só assim ficamos com a sensação de esgotar
todos os nossos recursos.
Hoje as palavras trazem o brilho da aurora,
transportam o medo da felicidade
e o coração escreve a sangue a esperança da vida.
Cada segundo é uma hora, cada hora um dia,
cada dia o futuro.
A escrita transpira os sentimentos,
da amargura à esperança,
do desespero à fé,
da impotência até à felicidade
de acreditar em Deus.
Lígia
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No 5º ano do Curso de Direito tivemos uma cadeira que
se chamava “Filosofia do Direito”. Infelizmente esta disciplina,
“a filosofia”, é sempre chamada não para filosofar, mas antes
para dar as várias perspectivas históricas de uma matéria
pretensamente filosófica. Em boa verdade e como dizia Kant “a
filosofia não se pode ensinar, apenas se pode aprender”. Já assim
era no liceu, ou seja, no fundo sobrava-nos sempre que … não
filosofávamos! Este assunto, o valor da dignidade humana, o
valor de um acto médico, o que são efectivamente direitos de
personalidade, o valor da experimentação em plena cirurgia, os
direitos para além da morte, tudo isto são temas que deveriam ser
conversados e estudados e porque não em Filosofia do Direito!
O objectivo principal seria provocar a discussão e para tal não se
poderia ficar só pela sala de aulas. Seria fundamental ir ao
hospital, conversar com quem passa efectivamente pelas
situações em análise, falar com os doentes, com os médicos,
cirurgiões, enfermeiros, etc, e assim atingir-se um nível de
sensibilidade adequado à discussão do assunto!
É quase como aquela história do professor de ‘direito da
família’ que sempre foi solteiro e nunca teve filhos! Como é que
este professor, apesar do brilhantismo da doutrina, pode ter uma
visão ampla e correctamente esclarecida do casamento, das
relações entre os cônjuges, do correcto exercício do poder
paternal, etc., etc., etc.! Ele terá a visão… do padre, não a de
alguém que tenha essa experiência de vida!
Conforme o referi noutro capítulo, em Direito, quando
estudamos estas realidades, fazemo-lo de forma superficial,
fragmentadas em diversas disciplinas e sem que se dê a devida
importância ao assunto. Devia-se valorizar a parte humana, a
parte dos sentimentos, conhecer casos concretos, perceber a
problemática da doação de órgãos, enfim, provocar o
envolvimento entre o aluno e a realidade, entre a sociedade e o
pequeno mundo dos que estão dependentes do correcto
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funcionamento das coisas!
A discussão era bem-vinda mas fora do cenário da
emoção, esquecer universos tétricos e valorizar a parte natural.
Imaginemo-nos em Paris, sentados num qualquer bistrot perto do
Quartier Latin, ou então em Montmartre na Place du Têtre
simplesmente a conversar. Perceber a ética na ciência e a ciência
da ética, provocar dúvidas e baralhar cenários! Ao direito cabe
este papel, ser dinâmico e tornar exequível a vontade colectiva
através de um Direito Objectivo pragmático.
Obviamente que todo e qualquer comércio de órgãos
humanos é eticamente indefensável e choca com princípios
“sagrados” que nunca deverão ser colocados em crise. Contudo,
este fantasma não deve perturbar que as coisas funcionem!
Parece-me que a lei actual que define quem pode efectivamente
ser dador tem de ser mais ambiciosa e ir muito mais além! Que
os nossos políticos percebam isto e depressa, pois o direito cria
a doutrina e afina a ética, mas sem vontade política não se chega
a lado nenhum! As doações entre irmãos, entre amigos (ver
notas finais), entre familiares mais afastados, têm de ser
correctamente avaliadas e devidamente ponderadas! Portugal
tem condições para fazê-lo sem mácula, isto é, sem as habituais
perturbações dos fantasmas que ‘volta e meia’ ensombram o
fenómeno da transplantação, sem falsos moralismos e sem
dúvidas existenciais!
Não nos podemos esquecer que, quando há precisamente
40 anos o Sr. Prof. Linhares Furtado teve a ousadia de iniciar em
Portugal a transplantação renal, um conhecido jornalista moveu
uma guerra “sem tréguas” à transplantação em geral!
Desinformou, escreveu títulos chocantes sobre “o escândalo dos
transplantes”, enfim, moveu uma guerra assente na descrença, na
ignorância e esqueceu completamente a nobreza da qualidade de
se ser dador, esqueceu que nessa altura os receptores eram
pessoas com estados de saúde muito delicados e com esperanças
de vida reduzidíssimas, esqueceu o brilhantismo dos cirurgiões e
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das equipas que os suportavam e que se iniciaram por pura
‘carolice’, enfim, prejudicou Portugal, prejudicou a Medicina e
prejudicou especialmente todos os que dependiam de um
transplante para sobreviver!
Felizmente a sociedade civil ignorou tudo isso e a
medicina não ficou refém de nenhum “velho do Restelo”! Hoje,
Portugal está muito bem colocado “em toda a linha” (à excepção
dos transplantes pulmonares!), para os mais curiosos, recomendo
a leitura do “Relatório Estatístico de 2008” elaborado pela
A.S.S.T., referente à actividade de Colheita e Transplantação.
Esse relatório poderá ser descarregado no endereço net:
www.asst.min-saude.pt/transplantacao/Paginas/RelatoriosActividade.aspx
Portugal está na vanguarda, é verdade, é o segundo país
que mais colheitas faz… mas esta constatação causa-me um
arrepio profundo, é que ainda que se atinja o primeiro lugar,
ainda assim, note-se, temos listas de espera de milhares de
pessoas, especialmente nos doentes renais! Logo, volto a repetir,
só com o recurso ao “dador-vivo” será possível combater esta
limitação objectiva! Infelizmente, muitos dos receptores podem
morrer à espera do transplante milagroso, mesmo que o sistema
esteja a funcionar em pleno e de forma fantástica! No caso dos
PAFs (8) o problema também se coloca na mesma perspectiva,
quanto mais cedo o transplante for feito, melhor qualidade de
vida o receptor terá, isto dadas as características degenerativas da
doença. O estado degenerativo é irreversível, logo torna-se
fundamental fazer o TRH enquanto o receptor ainda está em
condições físicas para tal.
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Não resisto a transcrever este pequeno texto abreviado do
site:
http://www.paramiloidose.com/site.php?Tipo=1&IDPag=5259
"A vanguarda portuguesa no campo dos transplantes
Portugal tem contribuído com inovações importantes. A
equipa do Hospital da Universidade de Coimbra, chefiada pelo
cirurgião Linhares Furtado, foi a primeira do mundo a utilizar a
técnica sequencial. Graças a este tipo de operação, tornou-se
possível transplantar três doentes a partir de um fígado. A
paramiloidose, mais conhecida como «doença dos pezinhos»,
caracterizada pela produção deficiente de uma substância no
fígado, obriga os doentes a serem transplantados. Mas o seu
órgão pode voltar a ser aproveitado. «Dá-se um fígado de
cadáver a um doente com paramiloidose e o órgão deste é
aproveitado. (…) Com a bipartição e o transplante sequencial,
podemos tratar três pessoas a partir de um só órgão (…).”
Concluindo, relembro o poder político que apesar de ser
sempre possível optimizar cada vez mais a recolha de órgãos em
dadores-cadáver, ainda assim, o número de transplantes é e será
sempre muito reduzido, comparativamente às necessidades reais
do país. Por essa razão temos de encontrar outras alternativas
eticamente aceitáveis, juridicamente correctas e humanamente
desejáveis. Só com o recurso a leis equilibradas, modernas e
pragmáticas será possível revolucionar toda a politica de
transplantação em Portugal.
(Nota: entretanto a lei mudou e agora as coisas estão muito diferentes. No final explicarei qual a situação actual)
Quando estávamos no meio do nosso drama, uma das
coisas que mais nos sensibilizou foi a quantidade de pessoas que
se ofereceram para serem dadoras. Algumas, não as
conhecíamos… eram amigos anónimos dos amigos, que iam
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conhecendo a história e sentiam-se impelidos a dar esse passo!
Nós os pais tínhamos a obrigação de ser dadores, mas estes não,
estes ofereciam-se pelo mais puro sentimento de generosidade
humana. A todos eles o nosso muito obrigado! Mas é disto que a
nossa sociedade precisa, de atitudes nobres, generosas,
corajosas, demonstrativas do mais puro amor e sã fraternidade
entre os seres humanos.
Houve realmente uma “onda de amor” que nos tocou a
alma! Rezaram-se missas, pediram muito por nós, acarinharam-
-nos sem nada nos dizerem, pessoas que nos eram próximas e
pessoas que não nos conheciam. Na verdade, desde a ciência à
fé, todos estiveram atentos, todos estiveram em campo, unidos
por um único elo, o nosso filho!
O mistério da Fé é tudo isto e também a Lígia se sentiu
tocada por ele e por essa razão quis ir a Fátima a pé. Quis passar
por essa provação e honrar as preces dos momentos difíceis! Em
2007, com um grupo de amigos entre os quais a Isabel que
também fez questão de ir e pela mesma razão, saíram de Ovar
rumo ao santuário.
A Lígia encontrou nessa provação algo que a levou até
Deus e já no Santuário, quando mostrou o nosso filho à cruz da
basílica que contempla todo o espaço envolvente, não conseguiu
articular nenhuma palavra.
Os olhos rasos de lágrimas diziam tudo!
Ela sentia-se efectivamente feliz, agradecida e confiante.
O nosso futuro será um pouco isto, acreditar na nossa
força e ter fé, muita fé! Somos a estrela que guia os nossos filhos,
que protege e que está presente. A nossa vida tem este
significado, temos o nosso papel e temos de o cumprir o melhor
que sabemos. Enquanto eles precisarem de nós estaremos aqui
para lutar, pois tudo na nossa vida resume-se a lutar e vencer. A
forma de o fazer terá de deixar lastro, por isso, convém que seja
uma luta agradável, serena e substancial.
É verdade que temos de viver o dia a dia de forma plena
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e aproveitar ao máximo os momentos que estamos juntos, mas
isso não tem nada a ver com o facto do Vitinho ser transplantado.
Não! Temos de o fazer, mas por princípio, isto é, por sistema e
fazer desta passagem terrena a melhor passagem. Para tal, os
momentos que estamos em família são efectivamente os mais
importantes e por isso, Ibiza acabou por ter em nós um
significado especial.
Escrevo estas palavras precisamente a partir de Ibiza. O
que nos sobra para recordar com saudade o passado, são os bons
momentos. Temos realmente de aproveitar o dia a dia, as
pequenas coisas, rir e rir, despreocupadamente, em suma, viver
tentando ser felizes! Ibiza ainda é um lugar mágico, pois nos
últimos anos tem tido o significado “do estarmos todos juntos”,
a liberdade, a despreocupação, o bom tempo, o mar que não
assusta, a vida fácil, o cheirinho a anos sessenta, as loucuras dos
outros, e … os gelados de Torino em Sta. Eulália, os Croissants
Parisienses de Monsieur “Croissant-Show” em Dalt-Vila Eivissa
(centro cidade), a canja e as saladas do Ses Galliner em San
Joseph de Sa Talaia...
O futuro é mesmo isto, é viver o dia a dia, um passo de
cada vez, ir devagarinho até se atingir o dia seguinte, a semana
seguinte, o mês seguinte, o ano seguinte, a década seguinte e o
século seguinte!
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O que se passa com a medicação é disto demonstrativo,
começa-se com um “batalhão” de medicamentos que vão sendo
gradualmente reduzidos, até ficarem apenas dois, o FK e o
Corticoide. Este último é tomado numa quantidade mínima e de
dois em dois dias.
É preciso irmos ‘com calma’, respeitar as medicações
“religiosamente”, quantidades e horários, pois o FK tem de ser
dado de 12 em 12 horas e meia-hora antes ou depois da ingestão
de qualquer alimento. A absorção do FK pelo organismo pode ser
prejudicada se simultaneamente forem ingeridos outros
alimentos, logo, é preciso preservar esses intervalos.
Com algum cuidado, muita fé, vontade de vencer e os
bons hospícios dos profissionais do pediátrico, estaremos sempre
no bom caminho!
Sinto-me a pessoa mais rica do planeta porque tenho uma
fortuna incalculável. É uma fortuna única, incomparável e
preciosa, os meus filhos.
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sábado, 25 de agosto de 2012
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