CAPÍTULO IX
TERROR – UMA REJEIÇÃO
Ilustração por Inês
Os dias que se seguiram ao transplante caracterizavam-se
pelo perigo de rejeição. A fase mais perigosa era a dos primeiros
três meses e por isso o Vitinho tomava ‘uma bateria’ de
medicamentos, religiosamente, e segundo uma posologia rígida
que nos tinham préviamente dado.
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Eram eles:
– FK 506 - Tacrolimus;
– Deflazacorte (gotas – posteriormente substituido
pela Prednisolona em comprimidos);
– Azatioprina (posteriormente substituido
pelo Micofenolato de mofetil);
– Aciclovir;
– Sulfametoxazol + Trimetoprim;
– Magnésio;
– Ácido Acetilsalícilico;
– Dipiridamol;
– Ácido Ursodesoxicólico;
– Ácido Fólico;
– Colecalciferol;
– e Ácido Ascórbico.
Os primeiros transplantados da história da medicina
tiveram uma esperança de vida média muito reduzida, o
problema comum era o processo de rejeição natural que se
desenvolvia nesses pacientes, logo na fase inicial pós-
-transplante. No fundo o que acontecia é que o sistema
imunológico detectava algo estranho, algo que não pertencia
àquele corpo e atacava-o! A dificuldade era esse sistema
imunológico não ter forma de reagir ‘inteligentemente’ e evitar a
auto-destruição do “seu dono”.
Por isso, para além do acto médico da cirurgia
propriamente dito, foi necessário evoluir noutro sentido, era
necessário enganar “as nossas próprias defesas”!
Com a descoberta da Ciclosporina, medicamento
imunomodulador (imunossupressor), revolucionou-se a
transplantação em geral e esta solução começou a ser encarada
com uma verdadeira alternativa de cura.
Paralelamente a medicina foi evoluindo, foi-se
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aperfeiçoando, “afinaram” os cruzamentos dos
imunossupressores com os corticoides e apareceram novos
imunossupressores. No caso especifico da transplantação
hepática pediátrica, hoje, já temos resultados globais notáveis.
Actualmente a taxa de sobrevida ao fim de cinco anos é
elevadissima e esse indicador só se tornou possível,
precisamente porque o imunossupressor debilitou o sistema
imunológico e conseguiu controlar os tais ataques contra o novo
fígado! Por outras palavras, diminui-se ostensivamente “as
resistências naturais” do transplantado, o que o enfraquece
contra todas as doenças em geral, mas isso permite-lhe viver uma
vida normal, embora com alguns cuidados suplementares,
obviamente! Por isso é que todo o cuidado é pouco e tentamos
proteger o nosso filho de tudo o que são viroses, maleitas
contagiosas, etc.
O que é curioso, é que apesar disso tudo, as crianças
transplantadas desenvolvem “outro” sistema imunológico muito
próprio, por exemplo, este ultimo inverno tivemos lá em casa
várias ocorrências de gripes e constipações. Todos fomos
tocados e o Vitinho deve ter sido o que foi menos afectado e já
no ano passado tinha acontecido a mesma coisa!
Como disse no inicio deste capítulo, o perigo inicial era a
possibilidade de ocorrer uma rejeição. Logo após os primeiros
oito dias de alta, fomos novamente a Coimbra e os indicadores
hepáticos continuavam bem. Regressámos a Ovar “sem umas
toneladas” de peso em cima de nós e vivemos as três semanas
que se seguiram, como a família mais feliz do planeta!
Já não posso precisar quando aconteceu, mas na segunda
ou terceira vez que regressámos a Coimbra os valores das
enzimas tinham disparado, foi um duro golpe e que não
estávamos à espera! Tudo aquilo por que tínhamos passado ainda
estava muito “à flor da pele” e de repente tudo ficou novamente
em perigo!
A Dra.Carla explicou-nos que estávamos precisamente no
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inicio de um processo de rejeição. O Vitinho teria de tomar umas
doses fortes de corticoides e submeter-se a uma biópsia hepática.
Sentimos novamente o chão a fugir-nos!
Voltámos a ser assaltados pelos mesmos fantasmas, foi
como levar um violento soco no estômago… ficamos sem ar e
com uma dor momentaneamente insuportável.
Mas porquê, qual a razão, e se a Cortisona não fizesse o
efeito pretendido! Iamos preparados para regressar nesse mesmo
dia a Ovar e agora, já sabiamos que tínhamos de ficar pelo menos
até ao dia seguinte!!
Deram-se os corticoides por via endovenosa e fomos para
a biópsia. Esta parte não correu lá muito bem, o problema foi
este, é que o técnico que executa a biópsia tem de espetar a
agulha no sítio certo, isto é, sem causar danos colaterais e num
bébé, isso pode não ser fácil por duas razões óbvias, primeiro
porque tudo é mais pequenino e depois, porque o bébé tem de
estar quieto. Só há uma forma de se garantir que ele esteja
estático, é com anestesia geral e foi aqui que as coisas não
começaram bem! O nosso filho estava desconfiado de que algo
iria acontecer e não queria largar a mãe, a nossa intenção era
colocar a máscara que o iria adormecer de forma subtil, só que,
forçaram-nos a deitá-lo confiantes que mal se colocasse a
máscara ele adormeceria, mas não, ele desatou a chorar ,
compulsivamente, e quando acordou, acordou exactamente no
mesmo tom…
Depois do descontrolo inicial, o Vitinho acabou por
acalmar mas ficou maçado e sentido. No dia seguinte os valores
tinham reduzido para os patamares correctos e quando chegaram
os resultados da biópsia soubemos que a rejeição tinha sido
“moderada”.
Felizmente, esta foi a única rejeição que ocorreu até hoje!
Presumimos que o problema teve origem num dos
medicamentos “base”. O que aconteceu foi que o corticoide que
era uma solução em conta-gotas (que neste caso actuava como
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imunossupressor), ter sedimentado no fundo do frasco e nós não
nos termos apercebido disso. Na prática “o principio activo”
ficou agarrado ao frasco e nós inconscientemente, estávamos a
dar só soro, ou coisa parecida… O facto do vidro ser escuro
ajudou a esconder o problema e nós, ‘aselhas’, não nos
apercebemos disso!
Não sei porquê, achei que o problema não estava nem no
enxerto, nem na medicação, simplesmente pareceu-me que algo
nos devia ter escapado. Andei a vasculhar e reparei no tal
depósito, agitei, agitei e agitei o frasco, e ficou na mesma, ou
seja, algo de anormal aconteceu àquele frasco! Como me disse
uma vez o Dr. Emanuel a propósito de outra questão, por vezes
a resposta está nas coisas simples e é muito provável que,
tratando-se de um transplante muito recente, de um “protocolo”
que tem de ser seguido “à risca” e que daquela forma “foi
furado”, em principio, tínhamos aí a explicação para o sucedido.
Uma coisa é certa, a rejeição foi debelada e também por
isso não valia a pena pensar mais no assunto.
Regressámos a casa, para voltar a Coimbra pouco tempo
depois e confirmar que estava tudo ok.
Não “ganhámos para o susto”, enfim, também nós
tínhamos de aprender a viver com a ansiedade “desta doença”! O
nosso filho é um doente crónico, sem o ser, isto é, como toma
uma medicação que o acompanhará para sempre, logo, nessa
perspectiva é um doente crónico, ainda que esteja impecável e
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“transpire” saúde!
Esta ansiedade não foi fácil de gerir no inicio, pois na 1ª
fase pós-transplante as “consultas de rotina” eram mensais. Nessas
consultas, entre muitas outras coisas, afere-se o nível de FK no
sangue e cruza-se esse valor com o valor das enzimas. Se o FK
estiver baixo e as enzimas ligeiramente altas, sobe-se o FK até à
próxima consulta, se o FK estiver baixo e as enzimas baixas, então
em principio mantem-se a mesma posologia. Se o FK estiver
demasiado baixo, sobe-se ligeiramente, mesmo que as enzimas
estejam bem. Para nós, até sabermos os valores exactos estávamos
sempre numa grande tensão, era dificil contermo-nos! O medo
falava sempre mais alto, o temor que as enzimas estivessem altas,
exageradamente altas! Com o passar dos tempos as consultas vão
espaçando cada vez mais, passam para intervalos de dois meses e
actualmente estão nos três meses. Mas a ansiedade continua a
mesma, essa é realmente dificil de contrariar!
Sempre que vamos a Coimbra, vamos com o sistema
nervoso “aos saltos”, no regresso é o relaxe completo, até se
torna perigoso, porque adormece a Lígia, adormece o nosso
filhote e eu, lá vou “bocejando atrás do bocejo” até finalmente
chegarmos a Ovar.
Por muito que nos tentemos mentalizar para este dia, algo
mais forte que nós esmaga-nos! É o medo, o medo incontrolável
que algo possa correr mal, que os resultados não sejam os
esperados e que tenhamos de reviver tudo outra vez.
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