CAPÍTULO VIII
OS DADORES
Por razões perfeitamente atendíveis, as identidades dos
dadores são confidenciais.
A imposição legal justifica-se por diversas razões,
sendo que a principal pretende acautelar qualquer tentativa de
negócio com orgãos humanos. Quando se está numa situação
como a nossa, estamos frágeis e permeáveis, o mesmo se diga
dos familiares dos dadores. Mas se nesse momento pensar-se
em “negócio” parece-me destituido de razoabilidade e quase
impossível de acontecer, não sabemos se mais tarde, não
poderão haver intervenientes com comportamentos
inadequados e moralmente censuráveis. Por outro lado,
percebe-se que se colocam algumas questões de ordem ética e
de ordem jurídica, porque o dador quando o é, está em morte
cerebral, mas toda uma esfera de direitos ainda protege a sua
dignidade enquanto pessoa humana. Há aqui uma fronteira
dificil de determinar, a fronteira entre o ser humano e a coisa.
Um cadáver já não é a sua pessoa em vida, mas também não é
uma coisa transacionável.
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ARTIGO 202º (Código Civil)
(Noção)
1. Diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objecto de
relações jurídicas.
2. Consideram-se, porém, fora do comércio todas as
coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como
as que se encontram no domínio público e as que são, por sua
natureza, insusceptíveis de apropriação individual.
O que se passa, é que imediatamente antes da morte
cerebral ser confirmada, o ser humano tem uma determinada
esfera juridica que se impõe universalmente, são os seus direitos
absolutos a funcionar na sua plenitude, o direito à vida, à
integridade física, etc. Após a declaração da morte cerebral,
aquela esfera é substituida por outra bem diferente. O cadáver só
por si não tem direitos de personalidade, mas a ética jurídica
manda-nos respeitar os direitos dos seus familiares e a própria
memória do ‘de cujus’. A personalidade jurídica cessa com a
morte, extinguindo-se os direitos e deveres de natureza pessoal e
transmitindo-se para os sucessores
mortis-causa, os de natureza
patrimonial. Cabe-nos a todos um imperioso ético de respeitar a
memória dos falecidos porque no fundo estamos a respeitar-nos
a todos enquanto seres humanos, sendo que neste e em qualquer
contexto, um cadáver merece sempre a protecção do direito.
Tanto assim é, que a lei penal considera-o merecedor dessa tutela
ao tipificar alguns crimes, entre eles, o de profanação e ocultação
de cadáver.
O momento da declaração da morte cerebral que tem
critérios objectivos e que não vale a pena agora aqui enumerar, é
controverso, e na faculdade de Direito lembro-me que a coisa foi
analisada um pouco na “galhofa”. O nosso professor, o Sr. Prof.
Hörster que tinha um humor muito peculiar e muito subtil, fazia
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questão de nos complicar as coisas e a determinada altura já
víamos depois da morte cerebral ser declarada, o defunto acordar
naturalmente e a invocar o seu direito à vida! Depois de passar
pelo que passei, percebi o quanto ingénuos éramos quando
deambulávamos pelos corredores da universidade, é que nessa
altura olhávamos para tudo o que aprendíamos, como um
somatório de palavras e frases que traduziam apenas conceitos e
teorias e nada mais que isso! Éramos simples armazenadores de
páginas e páginas de matéria! Afinal, para além disso tudo, existe
a vida cá fora, vida real, vida cruel, a vida verdadeira onde tudo
aquilo que aprendemos apenas tem aplicabilidade “ex-nunc”! Só
a partir do momento em que temos consciência que a vida é
muito mais do que meia dúzia de risadas na aula de Teoria Geral
do Direito, é que percebemos que tudo tem uma razão, tudo tem
um fim e um dia “vamos levar” com a lógica de tudo isso!
Voltemos ao dador e quem poderá ser dador?
A teoria do consentimento presumido é a que está
actualmente em vigor e resulta da superação do quadro
normativo anterior, em que se exigia o consentimento explícito do
dador em vida, ou dos seus parentes, em cadáver. Hoje, quem não
quer ser dador tem de manifestar essa sua intenção e registar-se
no RENNDA – registo nacional de não dadores e a consulta aos
seus familiares deixou de ser obrigatória e vinculativa. Pelo que
me apercebi, a consulta aos familiares continua a ser feita, isto é,
nota-se da parte médica um grande respeito pelos sentimentos e
pela dor daqueles que acabaram de perder os seus familiares, no
entanto o que releva é a explicação do enquadramento legal da
situação do dador.
Diferente é a situação do dador-vivo. Em 2004 só os
progenitores até determinada idade poderiam ser dadores-vivos,
hoje o quadro legal alterou-se ligeiramente e já se permite que os
cônjuges sejam dadores entre si. Esta limitação tem como único
fim evitar o comércio de órgãos humanos, como o que existe
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camufladamente em alguns países com estratos sociais
extremamente desfavorecidos.
Há contudo um problema que deve ser devidamente
equacionado, é que os órgãos para transplante são bens preciosos
que salvam vidas, mas são muito escassos! Já sabemos que
existem grandes listas de espera, situações de SOS, etc, mas
como poderemos combater essa escassez?
– optimizando-se a colheita para se obter cada vez mais e
melhores resultados (não obstante a excelente posição do nosso
país face ao resto do mundo - Portugal é o 2º país que mais
órgãos colhe, isto em termos percentuais, obviamente);
– encontrar alternativas à falta de órgãos (ver notas nas
últimas páginas).
Por força das campanhas de sensibilização e prevenção
rodoviária, da melhoria das estradas, da fiscalização das regras
de higiene e segurança no trabalho nas empresas e pela maior
consciencialização colectiva de todos nós, os dadores-cadáver
têm reduzido e felizmente que assim é e a tendência futura,
esperemos, deverá continuar a ser essa.
Ora, perante esta evidência, temos de ter capacidade de
recolher todos os órgãos que apareçam e de forma que possam
ser efectivamente utilizados. Não se pode desperdiçar um único
órgão e no caso dos transplantes hepáticos esta preocupação é
premente porque um mesmo órgão pode ser bipartido e permitir
pelo menos dois transplantes.
A coordenação nacional das unidades de colheita de
órgãos e transplante pertence à ASST – Autoridade para os
Serviços de Sangue e da Transplantação, autoridade esta recém
criada e que nasce na necessidade de estarmos em linha com a
legislação comunitária. Actualmente existem três centros de
recolha e transplante hepático, Lisboa, Porto e Coimbra, sendo
que apenas em Coimbra se fazem transplantes pediátricos.
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Mediante a referenciação dos potenciais dadores, as unidades de
recolha deslocam-se a qualquer hospital (que tenha U.C.I.) para
efectuar essa recolha e permitir que o órgão sirva para o fim que
lhe foi destinado.
A partir do momento que o dador é referenciado e
especialmente após a recolha dos seus órgãos, a unidade de
recolha tem de efectuar uma verdadeira corrida contra o tempo,
muitas vezes com risco das próprias vidas!
Desconheço se em Portugal já houve acidentes, mas no
estrangeiro já ocorreram vários, incluindo aéreos. É triste este
facto e tem o seu quê de irónico, mas é esta a pura realidade, por
isso, faço uma sincera homenagem a todos esses elementos que
já deram a sua vida e a todos os outros que estão sempre a
arriscar a vida em prole da comunidade.
A realidade da figura do dador-vivo, coloca-nos noutro
contexto. Na minha perspectiva, só com o recurso a este
expediente será possível combater as infindáveis listas de espera.
Como nos explicou o Dr. Emanuel, é de longe preferível
programar-se um transplante em que toda a equipa é previamente
avisada, apresenta-se “fresca”, em que os tempos de isquémia
estão perfeitamente controlados e em que tudo foi
antecipadamente acertado, do que, efectuar um transplante com
dador-cadáver em que a disponibilidade do órgão aparece por
vezes quando menos se espera e que pode apanhar um dos
cirurgiões de férias, outro doente, um anestesista fora do pais,
etc, etc, e em que tudo pode ficar comprometido se a equipa não
se conseguir colocar ‘a postos’ em tempo útil. O mais dramático,
é que pode-se chegar a essa conclusão de que não se actuou em
tempo útil, apenas mediante a falência do enxerto, porque
simplesmente o mesmo não “arrancou”. Infelizmente, quando tal
acontece a derrota é demolidora, sobram muitas questões e
muitas dúvidas e nem sempre se consegue chegar a uma
conclusão do que realmente aconteceu!
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Um dia ouvi o Sr. Prof. Linhares Furtado defender, “o
transplante hepático é um acto cirúrgico complicado, extenuante,
mais difícil de realizar quando comparado com o transplante
renal ou mesmo o do coração”, logo, sabendo isto, posso
legitimamente concluir que se lhe juntarmos o acto de separação
do enxerto do dador-vivo, então teremos um acto cirúrgico
verdadeiramente complexo. Por outro lado, repare-se, o Vitinho
foi transplantado com sete meses e meio e pesava pouco mais de
seis quilos, ou seja, tudo é diferente, as dimensões são
pequeninas, as artérias finas, tudo é muito mais delicado e aqui
apela-se muito mais à destreza do cirurgião.
Neste momento o grande problema com que deparamos
em Coimbra, é que toda aquela escola, todo aquele “saber de
experiência feito” que assenta numa tradição de 15 anos e numa
vasta equipa multifacetada, embora sob a forte dependência do
Dr. Emanuel, necessita urgentemente de ser alargada de maneira
que se formem novos elementos e permitam assegurar a
continuidade daquela competência técnica, garantindo-lhe assim
a mesma excelência.
Sem prejuízo das particularidades específicas de cada
elemento dessa equipa, no transplante pediátrico propriamente
dito, temos um Dr. Emanuel e um Dr. Aurélio, mas necessitamos
de mais, e esses mais têm de ser incluídos já na equipa, para se
irem entrosando, para irem vendo e aprendendo, para irem
conhecendo outros centros com maior volume de transplantações
como é o caso de Bruxelas, etc, etc. O Estado – Ministério da
Saúde / Administrações Hospitalares – têm definitivamente de
olhar para este problema, pois esta já é uma velha reivindicação
que tarda em ser satisfeita! Este ano em que se celebrou o 15º
aniversário do inicio da transplantação hepática em Coimbra, foi
publicamente assumido pelas administrações dos H.U.C. e do
C.H.C. (7), que os transplantes hepáticos pediátricos vão passar
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a ser feitos em ambiente pediátrico. Foi uma boa novidade e
todos perceberão imediatamente porquê! O facto de a criança ser
transplantada sem ter de sair do hospital e sem posteriormente ter
de regressar novamente ao mesmo hospital, obviamente que
“esse pormenor” reduzirá consideravelmente alguns dos riscos a
que estava desnecessariamente sujeita. Isto já é possível nas
instalações actuais e quando o novo Hospital Pediátrico estiver
pronto, então ainda melhor será!
O fígado de um dador-cadáver vai dar vida a alguém que
dele dependerá em absoluto. Um pouco desse dador vai
continuar a viver com o receptor. A maior homenagem que se
pode fazer ao dador é perceber nos olhos de quem vive, um
pouco da alma de quem o salvou! Um órgão humano que
funcione e permita a alguém viver, da mesma forma que a
própria vida humana, não tem valor! É um bem demasiado
precioso! Dador e receptor ficarão unidos para sempre por um
elo de amor intenso entre ambos.
O investimento do Estado na transplantação hepática
pediátrica, é uma obrigação lógica e um imperativo moral,
ambos impõem um investimento na vida, em algo que não tem
preço! Trata-se da vida de todos aqueles que de outra forma não
teriam qualquer viabilidade, dos meninos e meninas de Portugal
que também têm direito a ser futuro e de assim honrar a própria
memória de todos os seus dadores!
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“Deveria promover-se uma genuína cultura da
generosidade e da solidariedade. É preciso suscitar no coração
de todos uma autêntica e profunda consideração da necessidade
da caridade fraterna, de um amor que se possa exprimir na
decisão de tornar-se doador de órgãos”.
João Paulo II
A doação de um órgão de um dador-vivo é a
demonstração do mais puro acto de generosidade que nasce no
amor mais profundo, seja o de mãe ou de pai, seja o de
marido/mulher como agora recentemente também se tornou
possível.
“A decisão de oferecer sem recompensa uma parte do
próprio corpo, em benefício do bem-estar e da saúde de outra
pessoa é um autêntico acto de amor. Não se oferece
simplesmente uma parte do corpo, mas doa-se algo de si”.
João Paulo II
“A doação de órgãos é uma forma peculiar de
testemunho da caridade. Numa época como a nossa, com
frequência marcada por diversas formas de egoísmo, torna-se
cada vez mais urgente compreender quanto é determinante para
uma correcta concepção da vida entrar na lógica da gratuidade.
De facto, existe uma responsabilidade do amor e da caridade
que compromete a fazer da própria vida uma doação aos outros,
se quisermos verdadeiramente realizar-nos a nós próprios.
Como nos ensinou o Senhor Jesus, só aquele que doa a própria
vida a poderá salvar”.
Bento XVI
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É realmente intrigante presenciarmos algumas das
reacções do nosso filho perante as coisas. Por vezes, parece que
uma mão invisível o conduz e lhe permite percepcionar a
realidade de uma forma diferente, como se já a tivesse vivido.
Hoje já não é tão fácil discernir essas situações, mas repare-se,
entre finais de Abril e Agosto de 2004, o Vitinho esteve quase
sempre internado, depois já em casa, e por força da
imunossupressão muito agressiva, não o podíamos expor a riscos
desnecessários, por essa fundamental razão, nos meses que se
seguiram esteve sempre bastante resguardado. Entretanto ele
começou a andar e a falar e em tudo foi muito precoce,
ocasionalmente, mais que precoce, surpreendia-nos o facto de
ele aparentar conhecer determinadas coisas, às vezes eram os
pormenores que nos chamavam a atenção, mas nitidamente tinha
uma postura diferente daquela que tinham tido a Inês e a Patrícia
com a mesma idade.
É certo que o Vitinho não estava completamente fechado
ao mundo e a televisão é uma fonte privilegiada de
conhecimento, além disso tinha duas irmãs que puxavam por ele,
mas ainda assim, assistíamos a coisas inexplicáveis, coisas que
uma criança pequenina não deveria consciencializar! Por
exemplo, um dia deveria ter ele dois anitos ou pouco menos, eu
quis jogar um jogo e estava a pensar em futebol, ou naquelas
raquetes que se jogam na praia e ele não quis nem uma coisa nem
outra, porque, queria jogar qualquer coisa que eu não percebia o
que era! Ele falava no “pau”, num jogo com um “pau” ! Depois
do pau, avançou para a bolinha e mostrou-me que se punha
qualquer coisa nos sapatos. Enfim, ele queria jogar hóquei em
patins! Não me lembro de alguma vez ele ter visto um jogo de
hóquei, nunca lhe tinha falado em hóquei patins, nunca lhe tinha
explicado como era o stick …mas ele conhecia o jogo!
Sem querer entrar em teorias metafísicas ou
transcendentais, é verdade que aquilo a que chamamos “a nossa
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alma” é algo que está em nós e nunca saberemos onde e como se
aloja. Todas aquelas teses que fomos conhecendo ao longo da
história da medicina, da filosofia e da própria religião, sempre
me soaram a disparate! A nossa alma está em nós, mas nunca
saberemos como e porquê. Por isso mesmo, a esse nível, nunca
saberemos qual o efeito que um transplante poderá ter no ser
humano. Recentemente nos EUA um receptor de um coração,
acabou por casar com a viúva daquele que tinha sido o dador e
ironia dos destinos veio a falecer da mesma forma, suicidou-se!
É uma história estranha e dramática, mas pode levar-nos a
acreditar que algo de inexplicável acontece!
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Nota: Entretanto a lei mudou alargando o leque dos "dadores-vivos".
No final do livro farei um comentário sobre estas alterações.
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