quinta-feira, 14 de junho de 2012

CAPÍTULO VIII
OS DADORES

Por razões perfeitamente atendíveis, as identidades dos

dadores são confidenciais.

A imposição legal justifica-se por diversas razões,

sendo que a principal pretende acautelar qualquer tentativa de

negócio com orgãos humanos. Quando se está numa situação

como a nossa, estamos frágeis e permeáveis, o mesmo se diga

dos familiares dos dadores. Mas se nesse momento pensar-se

em “negócio” parece-me destituido de razoabilidade e quase

impossível de acontecer, não sabemos se mais tarde, não

poderão haver intervenientes com comportamentos

inadequados e moralmente censuráveis. Por outro lado,

percebe-se que se colocam algumas questões de ordem ética e

de ordem jurídica, porque o dador quando o é, está em morte

cerebral, mas toda uma esfera de direitos ainda protege a sua

dignidade enquanto pessoa humana. Há aqui uma fronteira

dificil de determinar, a fronteira entre o ser humano e a coisa.

Um cadáver já não é a sua pessoa em vida, mas também não é

uma coisa transacionável.

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ARTIGO 202º (Código Civil)

(Noção)

1. Diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objecto de

relações jurídicas.

2. Consideram-se, porém, fora do comércio todas as

coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como

as que se encontram no domínio público e as que são, por sua

natureza, insusceptíveis de apropriação individual.

O que se passa, é que imediatamente antes da morte

cerebral ser confirmada, o ser humano tem uma determinada

esfera juridica que se impõe universalmente, são os seus direitos

absolutos a funcionar na sua plenitude, o direito à vida, à

integridade física, etc. Após a declaração da morte cerebral,

aquela esfera é substituida por outra bem diferente. O cadáver só

por si não tem direitos de personalidade, mas a ética jurídica

manda-nos respeitar os direitos dos seus familiares e a própria

memória do ‘de cujus’. A personalidade jurídica cessa com a

morte, extinguindo-se os direitos e deveres de natureza pessoal e

transmitindo-se para os sucessores
mortis-causa, os de natureza

patrimonial. Cabe-nos a todos um imperioso ético de respeitar a

memória dos falecidos porque no fundo estamos a respeitar-nos

a todos enquanto seres humanos, sendo que neste e em qualquer

contexto, um cadáver merece sempre a protecção do direito.

Tanto assim é, que a lei penal considera-o merecedor dessa tutela

ao tipificar alguns crimes, entre eles, o de profanação e ocultação

de cadáver.

O momento da declaração da morte cerebral que tem

critérios objectivos e que não vale a pena agora aqui enumerar, é

controverso, e na faculdade de Direito lembro-me que a coisa foi

analisada um pouco na “galhofa”. O nosso professor, o Sr. Prof.

Hörster que tinha um humor muito peculiar e muito subtil, fazia

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questão de nos complicar as coisas e a determinada altura já

víamos depois da morte cerebral ser declarada, o defunto acordar

naturalmente e a invocar o seu direito à vida! Depois de passar

pelo que passei, percebi o quanto ingénuos éramos quando

deambulávamos pelos corredores da universidade, é que nessa

altura olhávamos para tudo o que aprendíamos, como um

somatório de palavras e frases que traduziam apenas conceitos e

teorias e nada mais que isso! Éramos simples armazenadores de

páginas e páginas de matéria! Afinal, para além disso tudo, existe

a vida cá fora, vida real, vida cruel, a vida verdadeira onde tudo

aquilo que aprendemos apenas tem aplicabilidade “ex-nunc”! Só

a partir do momento em que temos consciência que a vida é

muito mais do que meia dúzia de risadas na aula de Teoria Geral

do Direito, é que percebemos que tudo tem uma razão, tudo tem

um fim e um dia “vamos levar” com a lógica de tudo isso!

Voltemos ao dador e quem poderá ser dador?

A teoria do consentimento presumido é a que está

actualmente em vigor e resulta da superação do quadro

normativo anterior, em que se exigia o consentimento explícito do

dador em vida, ou dos seus parentes, em cadáver. Hoje, quem não

quer ser dador tem de manifestar essa sua intenção e registar-se

no RENNDA – registo nacional de não dadores e a consulta aos

seus familiares deixou de ser obrigatória e vinculativa. Pelo que

me apercebi, a consulta aos familiares continua a ser feita, isto é,

nota-se da parte médica um grande respeito pelos sentimentos e

pela dor daqueles que acabaram de perder os seus familiares, no

entanto o que releva é a explicação do enquadramento legal da

situação do dador.

Diferente é a situação do dador-vivo. Em 2004 só os

progenitores até determinada idade poderiam ser dadores-vivos,

hoje o quadro legal alterou-se ligeiramente e já se permite que os

cônjuges sejam dadores entre si. Esta limitação tem como único

fim evitar o comércio de órgãos humanos, como o que existe

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camufladamente em alguns países com estratos sociais

extremamente desfavorecidos.

Há contudo um problema que deve ser devidamente

equacionado, é que os órgãos para transplante são bens preciosos

que salvam vidas, mas são muito escassos! Já sabemos que

existem grandes listas de espera, situações de SOS, etc, mas

como poderemos combater essa escassez?

– optimizando-se a colheita para se obter cada vez mais e

melhores resultados (não obstante a excelente posição do nosso

país face ao resto do mundo - Portugal é o 2º país que mais

órgãos colhe, isto em termos percentuais, obviamente);

– encontrar alternativas à falta de órgãos (ver notas nas

últimas páginas).

Por força das campanhas de sensibilização e prevenção

rodoviária, da melhoria das estradas, da fiscalização das regras

de higiene e segurança no trabalho nas empresas e pela maior

consciencialização colectiva de todos nós, os dadores-cadáver

têm reduzido e felizmente que assim é e a tendência futura,

esperemos, deverá continuar a ser essa.

Ora, perante esta evidência, temos de ter capacidade de

recolher todos os órgãos que apareçam e de forma que possam

ser efectivamente utilizados. Não se pode desperdiçar um único

órgão e no caso dos transplantes hepáticos esta preocupação é

premente porque um mesmo órgão pode ser bipartido e permitir

pelo menos dois transplantes.

A coordenação nacional das unidades de colheita de

órgãos e transplante pertence à ASST – Autoridade para os

Serviços de Sangue e da Transplantação, autoridade esta recém

criada e que nasce na necessidade de estarmos em linha com a

legislação comunitária. Actualmente existem três centros de

recolha e transplante hepático, Lisboa, Porto e Coimbra, sendo

que apenas em Coimbra se fazem transplantes pediátricos.

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Mediante a referenciação dos potenciais dadores, as unidades de

recolha deslocam-se a qualquer hospital (que tenha U.C.I.) para

efectuar essa recolha e permitir que o órgão sirva para o fim que

lhe foi destinado.

A partir do momento que o dador é referenciado e

especialmente após a recolha dos seus órgãos, a unidade de

recolha tem de efectuar uma verdadeira corrida contra o tempo,

muitas vezes com risco das próprias vidas!

Desconheço se em Portugal já houve acidentes, mas no

estrangeiro já ocorreram vários, incluindo aéreos. É triste este

facto e tem o seu quê de irónico, mas é esta a pura realidade, por

isso, faço uma sincera homenagem a todos esses elementos que

já deram a sua vida e a todos os outros que estão sempre a

arriscar a vida em prole da comunidade.

A realidade da figura do dador-vivo, coloca-nos noutro

contexto. Na minha perspectiva, só com o recurso a este

expediente será possível combater as infindáveis listas de espera.

Como nos explicou o Dr. Emanuel, é de longe preferível

programar-se um transplante em que toda a equipa é previamente

avisada, apresenta-se “fresca”, em que os tempos de isquémia

estão perfeitamente controlados e em que tudo foi

antecipadamente acertado, do que, efectuar um transplante com

dador-cadáver em que a disponibilidade do órgão aparece por

vezes quando menos se espera e que pode apanhar um dos

cirurgiões de férias, outro doente, um anestesista fora do pais,

etc, etc, e em que tudo pode ficar comprometido se a equipa não

se conseguir colocar ‘a postos’ em tempo útil. O mais dramático,

é que pode-se chegar a essa conclusão de que não se actuou em

tempo útil, apenas mediante a falência do enxerto, porque

simplesmente o mesmo não “arrancou”. Infelizmente, quando tal

acontece a derrota é demolidora, sobram muitas questões e

muitas dúvidas e nem sempre se consegue chegar a uma

conclusão do que realmente aconteceu!

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Um dia ouvi o Sr. Prof. Linhares Furtado defender, “o

transplante hepático é um acto cirúrgico complicado, extenuante,

mais difícil de realizar quando comparado com o transplante

renal ou mesmo o do coração”, logo, sabendo isto, posso

legitimamente concluir que se lhe juntarmos o acto de separação

do enxerto do dador-vivo, então teremos um acto cirúrgico

verdadeiramente complexo. Por outro lado, repare-se, o Vitinho

foi transplantado com sete meses e meio e pesava pouco mais de

seis quilos, ou seja, tudo é diferente, as dimensões são

pequeninas, as artérias finas, tudo é muito mais delicado e aqui

apela-se muito mais à destreza do cirurgião.

Neste momento o grande problema com que deparamos

em Coimbra, é que toda aquela escola, todo aquele “saber de

experiência feito” que assenta numa tradição de 15 anos e numa

vasta equipa multifacetada, embora sob a forte dependência do

Dr. Emanuel, necessita urgentemente de ser alargada de maneira

que se formem novos elementos e permitam assegurar a

continuidade daquela competência técnica, garantindo-lhe assim

a mesma excelência.

Sem prejuízo das particularidades específicas de cada

elemento dessa equipa, no transplante pediátrico propriamente

dito, temos um Dr. Emanuel e um Dr. Aurélio, mas necessitamos

de mais, e esses mais têm de ser incluídos já na equipa, para se

irem entrosando, para irem vendo e aprendendo, para irem

conhecendo outros centros com maior volume de transplantações

como é o caso de Bruxelas, etc, etc. O Estado – Ministério da

Saúde / Administrações Hospitalares – têm definitivamente de

olhar para este problema, pois esta já é uma velha reivindicação

que tarda em ser satisfeita! Este ano em que se celebrou o 15º

aniversário do inicio da transplantação hepática em Coimbra, foi

publicamente assumido pelas administrações dos H.U.C. e do

C.H.C. (7), que os transplantes hepáticos pediátricos vão passar

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a ser feitos em ambiente pediátrico. Foi uma boa novidade e

todos perceberão imediatamente porquê! O facto de a criança ser

transplantada sem ter de sair do hospital e sem posteriormente ter

de regressar novamente ao mesmo hospital, obviamente que

“esse pormenor” reduzirá consideravelmente alguns dos riscos a

que estava desnecessariamente sujeita. Isto já é possível nas

instalações actuais e quando o novo Hospital Pediátrico estiver

pronto, então ainda melhor será!

O fígado de um dador-cadáver vai dar vida a alguém que

dele dependerá em absoluto. Um pouco desse dador vai

continuar a viver com o receptor. A maior homenagem que se

pode fazer ao dador é perceber nos olhos de quem vive, um

pouco da alma de quem o salvou! Um órgão humano que

funcione e permita a alguém viver, da mesma forma que a

própria vida humana, não tem valor! É um bem demasiado

precioso! Dador e receptor ficarão unidos para sempre por um

elo de amor intenso entre ambos.

O investimento do Estado na transplantação hepática

pediátrica, é uma obrigação lógica e um imperativo moral,

ambos impõem um investimento na vida, em algo que não tem

preço! Trata-se da vida de todos aqueles que de outra forma não

teriam qualquer viabilidade, dos meninos e meninas de Portugal

que também têm direito a ser futuro e de assim honrar a própria

memória de todos os seus dadores!

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“Deveria promover-se uma genuína cultura da

generosidade e da solidariedade. É preciso suscitar no coração

de todos uma autêntica e profunda consideração da necessidade

da caridade fraterna, de um amor que se possa exprimir na

decisão de tornar-se doador de órgãos”.

João Paulo II

A doação de um órgão de um dador-vivo é a

demonstração do mais puro acto de generosidade que nasce no

amor mais profundo, seja o de mãe ou de pai, seja o de

marido/mulher como agora recentemente também se tornou

possível.

“A decisão de oferecer sem recompensa uma parte do

próprio corpo, em benefício do bem-estar e da saúde de outra

pessoa é um autêntico acto de amor. Não se oferece

simplesmente uma parte do corpo, mas doa-se algo de si”.

João Paulo II

“A doação de órgãos é uma forma peculiar de

testemunho da caridade. Numa época como a nossa, com

frequência marcada por diversas formas de egoísmo, torna-se

cada vez mais urgente compreender quanto é determinante para

uma correcta concepção da vida entrar na lógica da gratuidade.

De facto, existe uma responsabilidade do amor e da caridade

que compromete a fazer da própria vida uma doação aos outros,

se quisermos verdadeiramente realizar-nos a nós próprios.

Como nos ensinou o Senhor Jesus, só aquele que doa a própria

vida a poderá salvar”.

Bento XVI

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É realmente intrigante presenciarmos algumas das

reacções do nosso filho perante as coisas. Por vezes, parece que

uma mão invisível o conduz e lhe permite percepcionar a

realidade de uma forma diferente, como se já a tivesse vivido.

Hoje já não é tão fácil discernir essas situações, mas repare-se,

entre finais de Abril e Agosto de 2004, o Vitinho esteve quase

sempre internado, depois já em casa, e por força da

imunossupressão muito agressiva, não o podíamos expor a riscos

desnecessários, por essa fundamental razão, nos meses que se

seguiram esteve sempre bastante resguardado. Entretanto ele

começou a andar e a falar e em tudo foi muito precoce,

ocasionalmente, mais que precoce, surpreendia-nos o facto de

ele aparentar conhecer determinadas coisas, às vezes eram os

pormenores que nos chamavam a atenção, mas nitidamente tinha

uma postura diferente daquela que tinham tido a Inês e a Patrícia

com a mesma idade.

É certo que o Vitinho não estava completamente fechado

ao mundo e a televisão é uma fonte privilegiada de

conhecimento, além disso tinha duas irmãs que puxavam por ele,

mas ainda assim, assistíamos a coisas inexplicáveis, coisas que

uma criança pequenina não deveria consciencializar! Por

exemplo, um dia deveria ter ele dois anitos ou pouco menos, eu

quis jogar um jogo e estava a pensar em futebol, ou naquelas

raquetes que se jogam na praia e ele não quis nem uma coisa nem

outra, porque, queria jogar qualquer coisa que eu não percebia o

que era! Ele falava no “pau”, num jogo com um “pau” ! Depois

do pau, avançou para a bolinha e mostrou-me que se punha

qualquer coisa nos sapatos. Enfim, ele queria jogar hóquei em

patins! Não me lembro de alguma vez ele ter visto um jogo de

hóquei, nunca lhe tinha falado em hóquei patins, nunca lhe tinha

explicado como era o stick …mas ele conhecia o jogo!

Sem querer entrar em teorias metafísicas ou

transcendentais, é verdade que aquilo a que chamamos “a nossa

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alma” é algo que está em nós e nunca saberemos onde e como se

aloja. Todas aquelas teses que fomos conhecendo ao longo da

história da medicina, da filosofia e da própria religião, sempre

me soaram a disparate! A nossa alma está em nós, mas nunca

saberemos como e porquê. Por isso mesmo, a esse nível, nunca

saberemos qual o efeito que um transplante poderá ter no ser

humano. Recentemente nos EUA um receptor de um coração,

acabou por casar com a viúva daquele que tinha sido o dador e

ironia dos destinos veio a falecer da mesma forma, suicidou-se!

É uma história estranha e dramática, mas pode levar-nos a

acreditar que algo de inexplicável acontece!

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Nota: Entretanto a lei mudou alargando o leque dos "dadores-vivos".
No final do livro farei um comentário sobre estas alterações.

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