segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Capítulo I

E de repente, tudo pára…
Lá fora passam os carros, numa pressa tão inusitada, que parecem pertencer a uma qualquer corrida de fim-de-semana.
Correr…
Parece que o tempo me deu um estalo em câmara lenta e me deixou parada, fazendo cair tudo o que mexia.
Agora sinto o ar, oiço os passos discretos de quem se move, atento nos sinais mais discretos do tempo.
O dia-a-dia está off. Suspende-se o stress, e tudo o que ontem era importante, hoje é completamente destituído de sentido. Creio até que o ontem tinha um pouco de insano, ridículo e até satírico.
Agora o respirar é vital.
O homem é realmente um bicho descaracterizado, onde nada é igual a nada, onde ontem e hoje não tem sentido. Sim, falta-nos sentido, o nosso lado racional transforma-se e dissolve-se perante o medo. E de repente tudo fica reduzido a reacções primárias: choro, medo, taquicardia, sorriso, tremuras…
Os “objectivos de vida” são detalhes e ficam reduzidos á existência, quando nos se depara uma barreira, uma doença, uma infelicidade qualquer.

São 10 horas da noite, existem dois mundos em paralelo a rodar, um lá fora, e outro na dimensão oposta, cá dentro, dentro de um quarto, com janela, para outra janela de vidro martelado, com estores para tapar o sol que teima em se levantar no outro lado. Aqui, apenas as lâmpadas fluorescentes fazem a diferença, quando se acendem e anunciam a noite, bizarro, não?
Depois ouve-se lentamente os choros a sobressair entre as vozes das enfermeiras, o tlim tlim dos biberões esterilizados a serem alvo do sossego dos recém–nascidos sem mãe presente e que ao colo de uma bata branca deglutem o líquido branco que os sustêm mas não acalenta.
Dentro do espaço onde faço os movimentos de translação, ouço a bateria do computador, o respirar do meu bebé, e penso que fazer às horas de que já perdi o ponteiro.
As minhas necessidades passaram ao ponto primário e agora basta-me muito pouco para levar o dia, a não ser este aparelho, que me permite suspirar pensamentos sem medo de me perder nos mesmos.
Luto entre o que tenho por fazer lá fora e a necessidade de estar aqui a 500%, entrecorto a escrita com o ouvido atento no respirar. O turbilhão de emoções, entre a esperança, a lógica, o racional e o desespero esgotam-me as forças e chego às 22 horas exausta.
Só quero que a noite me relaxe com os braços á volta do meu filho e que a manhã apareça com laivos de nova esperança, no sorriso sereno de uma médica, que me diz: vamos ver, vamos ver…
E no corre, corre parado das horas desfaz-se e refaz-se a esperança, a raiva de lutar contra o tempo e a teimosia de acreditar em Deus e que o milagre aconteça.
Tenho fé, tenho fé, tenho muita fé.
Na janela interior do quarto, tenho uma imagem de Nossa Senhora, com uma serenidade espelhada no rosto, de que não me tinha apercebido anteriormente. As suas mãos unidas em oração, pedem-me paz e oração, não resisto e rezo, rezo…

Lígia,
Hospital de Santo António, Maio de 2004

Sem comentários:

Enviar um comentário