Lutar até Viver de Vitor Raimundo Martins
Primeiro a questão do género. Não é um romance. Não é uma narrativa ficcionada.
É um depoimento pessoal:
- rigoroso, na apresentação dos factos;
- corajoso, nas críticas a pessoas e instituições;
- sensível e sofrido, com forte carga emocional;
- delicado no tratamento do tema da transcendência.
Do que trata – da realidade da vida e do mistério da morte, de uma criança que nasce com grave doença hepática que a levará á morte; de uns pais que não desistem nunca de a salvar da morte anunciada; de duas irmãs que “amam o seu irmão pequenino e não o querem perder”; das dificuldades de os médicos e os hospitais lidarem com a doença da criança e com o sofrimento dos Pais; de terem chegado a um porto seguro no serviço de transplantação hepática dos Hospitais de Coimbra onde o único tratamento possível foi efectuado – a transplantação de um fígado. De tudo isto trata este livro e o prefácio do Dr. Emanuel, o cirurgião que executou o acto, explica-o bem.
O livro está bem escrito e é por isso de leitura muito agradável. Não tem pretensões de academismo literário. Não é uma escrita pretensiosa ou moralista. O texto brota quase espontaneamente do coração do Pai, com incisos da alma da Mãe Lígia, que não hesita em escrever uma primeira carta a Deus, pondo-O ao corrente do que se está a passar com o seu filho Vitor, como diz, um “ser pequenino que criaste à tua imagem”. E pede com simplicidade que faça o milagre de o salvar da ameaça mortal da doença hepática e metabólica.
Depois de ter sido feita a transplantação de dador morto, a poucas horas de ser colhida parte do fígado da mãe, ela escreve uma segunda carta que vos vou ler:
- Bom dia Deus,
Hoje a aurora trazia uma luz diferente, com uma luminosidade quase celestial, era o teu olhar Deus, tenho a certeza. Olhei pela janela e os pássaros que voavam celebravam a tua luz. Continuo a louvar-te, sei que iluminaste as mãos dos homens e deste a tua mão ao meu pequenino para que se mantivesse forte. Obrigado Deus por me teres ouvido, estou contigo no meu coração e a cada hora a Tua presença traz-me alento.
Obrigado Deus.
Duas palavras aqui se justificam sobre o que se chama milagre. Não é uma subversão da natureza, tornar branco o que é negro para espanto dos incautos. O milagre é a aceitação da presença na auto consciência individual de uma transcendência sem nome, sem matéria e sem tempo. O milagre, como diz o autor foi construído pelas mãos dos profissionais. Para a Lígia essas mãos humanas e casuais foram guiadas para serem perfeitas pela acção invisível e indemonstrável da transcendência a que chamam Deus, mas que, na verdade, não tem nome nem é material.
Fechado este parêntesis direi mais que o livro narra as dificuldades do diagnóstico de uma doença rara, as hesitações médicas sobre o melhor tratamento e a dificuldade em encontrar um profissional que liderasse a salvação da criança como responsabilidade sua. Quando o Serviço de Transplantação Pediátrica de Coimbra com a liderança do dr. Emanuel Furtado assumiu o Vitor tudo se simplificou, gerou nos pais a confiança numa competência e sustentou a esperança.
Este desfecho feliz leva-nos a exigir que esta seja a regra e não a excepção.
Daniel Serrão
Nota: este texto reproduz exactamente as notas manuscritas que o Sr. Professor teve a amabilidade de me oferecer no final. As aspas (parte das irmãs) estava por completar e citei de memória.
O Sr. Professor concluiu falando um pouco do Sr. Professor Linhares Furtado e da forma com o conheceu ainda jovem. A última nota no rascunho é “o Professor Linhares Furtado consumiu a sua vida profissional de exímio cirurgião a lutar contra desinteresses e rotinas. Escreveu um livro corajoso que merece ser lido…”.
O resto é difícil de citar de memória, pois tenho receio de trair o espírito e a letra do verdadeiro discurso.
sábado, 3 de julho de 2010
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