terça-feira, 29 de maio de 2012

O PÓS-TRANSPLANTE

CAPÍTULO VII

O PÓS-TRANSPLANTE

Carta a DEUS – 2

Bom dia Deus,

Hoje a aurora trazia uma luz diferente, com uma

luminosidade quase celestial, era o teu olhar Deus, tenho a

certeza. Olhei pela janela e os pássaros que voavam celebravam

a tua luz. Continuo a louvar-te, sei que iluminaste as mãos dos

homens e deste a tua mão ao meu pequenino para que se

mantivesse forte. Obrigado Deus por me teres ouvido, estou

contigo no meu coração e a cada hora a Tua presença traz-me

alento.

Obrigado Deus.

Lígia

Na manhã seguinte, mal chegámos à beira do nosso filho

vimos que o milagre continuava a transformá-lo com toda a sua

beleza, com todo o esplendor!

Não haviam dúvidas sobre o desempenho do novo

fígado, o Vitinho aos poucos retomava a cor normal, finalmente

tinha a cor de um bébé. A própria Dra. Isabel ficou surpreendida,

pois o amarelo acastanhado das escleroticas tinha desaparecido

por completo.

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O nosso primeiro dia da nova vida do Vitinho, resumiu-se

a estarmos ao seu lado, a admirarmos a sua muito lenta

recuperação. Ao final da tarde fomos visitados pela Dra. Ana

Maria que nos quis conhecer e deixar uma palavra de coragem.

Passou o primeiro dia e veio o segundo, sempre que se

tirava um tubo qualquer, era uma vitória e depois de tantas

derrotas, todas estas vitórias eram magnificas.

Estivemos três dias na UCI sob o cuidado da equipa do

Pediátrico. A transferência para o Pediátrico foi um momento de

alguma tensão, pois era necessário descer a maca pelo elevador,

percorrer o espaço até à ambulância e depois ir a “passo de

caracol” até ao Hospital Pediátrico. Para os profissionais do

Pediátrico ‘este passeio’ é de má memória por razões que não

quero aqui referir, o problema é que apesar da curta distância, na

avenida existem umas lombas limitadoras de velocidade que são

um verdadeiro pesadelo. Na ambulância, o médico que

acompanha a criança não pode perder de vista nenhum dos tubos

um segundo que seja, porque nenhum deles pode soltar-se e

quando passam pelas tais lombas, há o risco disso poder

acontecer. Tudo pode ser posto em causa por um simples

solavanco! Já depois, no Pediátrico, a maca tem de percorrer o

percurso inverso, isto é, tem de sair da ambulancia e ser levada

até o 2º piso onde se encontra a UCI.

Desde o primeiro dia que o Vitinho ansiava por água,

mas apenas lhe podiamos molhar os lábios. No Pediátrico, a

Lígia disse-me que achava que o nosso filho queria mamar e

encostou-lhe o peito aos lábios, mal ele sentiu o calor do corpo

da Mãe desatou logo a mamar. Só o deixámos um bocadinho e

perguntámos à Dra. Isabel se o podiamos fazer, ao principio ela

ficou admirada mas logo reagiu e disse-nos “se ele queria mamar

então que mamasse”!


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A Esperança – por Inês
Nesta fase conhecemos a Dra. Carla recém chegada de

férias. A Dra. Carla e a Dra. Isabel faziam uma excelente equipa

e no período que estivemos nos cuidados intensivos lidámos

mais com a Dra. Carla. Curiosamente esta passagam deixou-nos

poucas recordações, porque, felizmente, foi muito rápida. Já não

me recordo bem, mas penso que o Vitinho passou para a

Enfermaria no final do 2º dia, mas esse “pormenor”, agora, já

não é importante, o que interessa relatar é que a recuperação foi

rápida. Já viamos o nosso filho sorrir, já lhe pegavamos ao colo

e ele já interagia connosco. Ao 6º dia após transplante a Dra.

Isabel mandou-nos… passear!

Lá fomos nós, para os jardins do Pediátrico, admirar a luz

do sol e simplesmente sentir o vento, ouvir os pássaros, e

respirar. Como as coisas simples são as mais belas! Estávamos

reduzidos a um pequeno jardim, mas tudo era fantástico,

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especialmente a calma que nos rodeava, mostravamos ao nosso

filho as pequeninas coisas, tudo o que nos suscitava interesse,

tudo mesmo!

Começava a tornar-se possível o sonho que fui sonhando,

de que um dia lhe iria mostrar um golfinho, um cinema, uma ida

aos insufláveis, o algodão doce, a feira medieval e que iria

admirá-lo a correr, a fazer as suas asneiras, a curar o doi-doi, a

amaldiçoar os peixes que não se deixam agarrar e a espreitar pela

janela do avião!

Tudo o que faziamos naquele jardim tinha o mesmo

significado, éramos livres e podiamos olhar para o céu e tentar

perceber se estávamos a ser vigiados! Talvez pelo meu Tio

Daniel que nos tinha deixado há tão pouco tempo, talvez nos

tivesse visto e estivesse a cantar-nos uma das suas belas músicas,

“brise, brise douce, …” quem sabe! Se existe um céu, ele estará

lá de certeza e a sua voz confunde-se agora com a do vento, deve

estar olhar por nós, a sorrir-nos por entre aquela barba simpática

e a saudar-nos com o seu habitual “salut les petits amis”… talvez

esteja zangado com Deus, pois cá na terra o Daniel não Lhe dava

grande crédito, mas lá, quem sabe, talvez até Lhe tenha dado

uma reprimenda, por o ter levado antes do tempo certo, como já

o tinha feito com o meu irmão! Ou… talvez não, até porque a sua

imagem lembra a que se vislumbra do Santo Sudário! Deus não

se iria zangar com alguém que se parece com o seu filho e tinha

um coração de ouro!

O passeio pelos jardins foi o nosso primeiro passo para o

regresso à liberdade. Um ou dois dias depois fomos ao Centro de

Histocompatibilidade para nos inscrevermos enquanto dadores

de medula óssea. Na enfermaria do Pediátrico, quem lá

“estaciona” umas semanas como nós, convive com algumas das

doenças mais terríveis! Uma das Mães com que a Lígia

estabeleceu alguma empatia, foi uma Mãe de um menino com

leucemia e o pouco que ambos poderiamos fazer era

registarmo-nos enquanto dadores.

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Ao longo do tempo que durou o internamento, trouxe as

miúdas várias vezes para estarem connosco, era importante para

elas e era importante para a mãe. O mundo da Lígia continuava

cheio de limitações e condicionado pelo que o momento

impunha, ultrapassar a noite era o pior, a inevitabilidade de

dormir num cadeirão, o ambiente hospitalar, os cheiros, os sons,

tudo era deprimente! Mal davam as oito da manhã ela

telefonava-me, quer eu estivesse em Ovar, quer no hotel em

frente, dava-me as primeiras ‘sensações’ do dia e logo tudo

começava a fluir mais rápidamente, a disposição, a esperança,

enfim, tudo era muito mais fácil à luz do dia e então, ao lado “dos

nossos”, ainda mais coragem arranjavamos. Sempre que as

miudas vinham, também para elas as coisas tornavam-se mais

fáceis, primeiro porque viam o irmão e a mãe, depois porque a

vida no hotel era simpática e elas adoravam o restaurante, aquele

com nome “de quem enveredou pela magistratura”.

Apesar de tudo isto, estávamos ávidos de estar os cinco

juntos. Na segunda feira dia 02 de Agosto pedimos à Dra Isabel

se nos deixava jantar todos juntos no quarto de hotel.

Ela permitiu e assim tivemos um Jantar memorável!

Enfim, todos finalmente juntos, em família e num ambiente

acolhedor, agradável, nada parecido com o que tinhamos tido

até ali.

Foi tudo ‘quase’ perfeito! Quase porque apanhei uma

intoxicação alimentar que me deixou de rastos. Das duas uma, o

agente causador ou foi uma mousse que comi nesse jantar e que

mais ninguém comeu, ou foi uma qualquer ‘porcaria’ que comi

noutro sítio!

Mal imaginava eu o que me esperava daí a umas 6 a 7

horas...

Levei as miudas para Ovar e regressei a Coimbra, ao

levantar-me começaram as náuseas, a diarreia, vómitos, enfim já

não saí do hotel! Nesse dia a Lígia não pôde contar comigo e

como não sabiamos exactamente o que é que eu tinha, não

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poderia sequer aproximar-me do Vitinho! Estando ele com o

sistema imunitário constrangido, ninguém doente poderia sequer

aproximar-se, eu incluido, logo… entrei de quarentena!!

E foi assim, desta forma inglória que acabou a minha

contribuição! A partir dali a Lígia teve de fazer tudo sózinha.

No dia 3 a Dra. Isabel avisou-nos que iriamos ter alta no

dia seguinte. Nem acreditavamos que iamos para casa, que iamos

ficar todos juntos “a sério”, que iamos dormir tranquilamente,

utilizar os nossos quartos de banho, respirar o ar do quintal,

poder fazer uns churrascos e se o tempo ajudasse, até dar um

mergulho na piscina!

Eu já tinha ouvido falar destas “altas” milagrosas dos

meninos de Bruxelas, que iam para casa ao 8º dia, mas pensei

que fossem daquelas coisas que “só acontecem aos outros”,

aplicando aqui o dito popular num sentido positivo!

A nossa alta foi ao 9º dia e antes do transplante eu e a

Lígia tinhamos pensado que se conseguissemos passar o Natal

em casa, já seria muito bom! Ao recebermos a notícia da alta ao

9º dia sentimo-nos realmente iluminados e quase eufóricos.

Só que eu estava “feito num oito”, já tinha sido visto por

um médico e estava medicado, mas caramba, a coisa tinha-me

batido forte! No dia seguinte teriamos de arranjar uma solução

para podermos ir embora!

Assim foi, no dia da partida eu estava muito melhor, mas

não arriscámos e chamámos um taxi de Ovar. A Mãe da Lígia

entretanto também tinha chegado, o Taxi levou-me a mim, e a

Lígia levou o nosso carro.

O Vitinho ia visivelmente satisfeito a admirar a paisagem

e assim regressou finalmente a casa.

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sexta-feira, 25 de maio de 2012

A Fada Madrinha – por Patrícia


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O Desespero – por Inês
É triste, muito triste, a morte é um vazio profundo que

não tem retorno.

Tinha eu 14 anos quando o meu irmão Carlos Alberto

morreu de ataque cardiaco. Caiu fulminado quando conversava

comigo, morreu nos meus braços e esse facto marcou-me

profundamente, pois o meu “Mano” como eu lhe chamava, tinha

apenas 18 anos. Aquele dador anónimo, era um irmão de alguém,

talvez, e o filho de uma Mãe que chorava a sua dor!

Eram 3:00 da manhã, os sentimentos atropelavam-se,

estava verdadeiramente perdido, desorientado e quando a Lígia

saiu do bloco vinha lívida, exactamente no mesmo estado em que

eu me encontrava. Ela descreveu-nos tudo o que se passou e só

saiu de lá depois de ver o Vitinho fechar os olhinhos.

Tinhamos acabado de nos despedir do nosso filho, pela

primeira vez não estávamos ao seu lado para o proteger e

faltava-nos a sua companhia, estávamos verdadeiramente

desamparados e desesperados, entregues à medicina e a Deus…

se ele existisse!

Ficámos por ali, “abandonados” nos H.U.C. e a

determinada altura percebemos que não estávamos a fazer nada

e certamente tão cedo ninguém mais nos daria novidades.

O que entretanto tínhamos conseguido saber é que iam

acontecer dois transplantes, o primeiro seria o de uma paciente

adulta e o segundo o do Vitinho. A paciente estava em estado

crítico e por isso tinha de ser a primeira, mas para nós, embora

entendendo essa lógica, esta notícia deixou-nos inquietos por

causa do tempo de isquémia.

Tentando explicar o processo de forma simples, o fígado

do dador seria sujeito à sua “bipartição”. Para um adulto, basta um

dos lóbulos, para um bébé, obviamente que a parte que lhe couber

terá de ser “reduzida”. A técnica da redução do segmento não é

propriamente simples de executar, ou melhor tanto a bipartição

como a redução, são técnicas complexas, demoradas e se mal

feitas comprometem o êxito do transplante, digo-o mas não

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percebo nada do assunto, apenas estou a citar o Dr. Emanuel

Furtado que teve a amabilidade de mo explicar! Tudo isto demora

tempo e esse tempo é precioso, o tempo de isquémia é

precisamente o tempo que o orgão aguenta até ser novamente

irrigado pela corrente sanguinea, sem que se comprometa a função

do enxerto, agora e… sempre! O ideal seria que esse hiato de

tempo não ultrapassasse as 6 horas, mas hoje em dia toleram-se

tempos de isquémia mais alargados e ao que parece, sem que se

verifique “o risco de função pobre”. De qualquer modo e como diz

o Dr. Emanuel, “numa coisa estão todos de acordo, é que a quanto

menos tempo de isquémia o enxerto estiver sujeito, melhor!”.

O facto de termos consciencia disto mesmo,

atormentava-nos, é que o transplante hepático nada tem a ver

com o transplante renal, o acto cirurgico é muito mais complexo,

muito mais demorado e… antes do Vitinho havia o outro

transplante! Nós também sabiamos que o fígado é o orgão do

corpo humano que melhor capacidade tem de se regenerar,

sabiamos de tudo isso, mas a angustia tinha-se apoderado de nós

e dificilmente nos largaria, eram diversas as variáveis e todas

elas jogavam em desfavor do nosso filho.

Saimos dos H.U.C. e fomos para o nosso hotel. Cada

segundo, cada minuto, demoravam uma eternidade! Não

conseguimos dormir e demos connosco a rezar

desesperadamente, eu, para ser franco nem era bem rezar,

lembro-me que repetia incessantemente “o Vitinho vai viver, o

Vitinho vai viver, o Vitinho vai viver, o Vitinho vai viver, o

Vitinho vai viver, o Vitinho vai viver”, isto continuamente, sem

fim, até a quase senilidade!

Finalmente chegaram as 8 horas! Fomos ao Pediátrico,

viemos do Pediátrico, disseram-nos que não valia a pena irmos

já aos H.U.C., deambulámos pelos diversos sítios. Conseguimos

apurar que o transplante do Vitinho ainda não tinha começado,

continuávamos perdidos, tentavamo-nos encontrar, mas não

conseguiamos lidar com tanta ansiedade!

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Voltámos ao Pediátrico e dirigimo-nos para a cama onde

o nosso filho tinha estava internado. A enfermaria da pediatria é

composta por pequenas alas de três camas, estávamos isolados,

porque isso era possível, isto é, o Hospital Pediátrico não estava

num momento de grande afluência e assim protegia-se o Vitinho

de potenciais contágios de outras quaisquer maleitas, pois a

acontecerem, poderiam complicar tudo muito mais. Quando

chegámos à “nossa cama” ela já lá não estava, ou melhor essa ala

estava vazia, tinha apenas duas cadeiras! Ao constatarmos esse

vazio, ainda ficámos pior, estávamos realmente muito em baixo!

Todos os dias lá chegava daquela forma, olhava para ele na

camita e tentava sacar-lhe um sorriso e agora … apenas o vazio!

Não conseguiamos conter-nos e a Dra. Isabel nunca mais

aparecia o que inviabilizava que obtivessemos informações. Dei

por mim sentado a olhar para o chão, a deixar correr as lágrimas

livremente, estático, como se tudo estivesse perdido, como se

mais nada interessasse!

Realmente não valia a pena ficarmos por ali, até porque o

ambiente “por natureza”, já era suficientemente deprimente, com

a visão de outras crianças doentes, algumas delas terrívelmente

doentes! Voltámos a sair do Hospital e fomos para o Hotel pois a

mãe da Lígia deveria estar prestes a chegar de Ovar. Já no quarto

do hotel soubémos que o transplante se tinha finalmente

iniciado, já não posso precisar que horas eram, mas lembro-me

que desta vez tinhamos conseguido algumas informações, entre

elas, que foi dificil encontrar uma “veia boa” e que o Dr.

Emanuel já “em desespero” tinha-se socorrido do pescoço, mas

... dados exactos de como estava a correr o acto cirúrgico, isso

não sabíamos!

Nessa altura, pouco mais poderiamos fazer, a Lígia

agarrou-se a um Terço a rezar desenfreadamente e eu,

instintivamente agarrei a cruz que tenho na volta do pescoço e

continuei a minha “oração do costume”, isto durante umas três

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horas, até que, como não aguentávamos mais decidimos ir

novamente para os H.U.C..

Lá chegados, não conseguimos ver ninguém, nem saber

de nada até porque o Bloco era num local não acessível.

Estávamos no piso dos doentes hepáticos e que também

albergava a U.C.I., piso esse para onde o Vitinho iria após o

transplante.

De repende apareceu-nos o Dr. Bento mostrando surpresa

por encontrar-nos. Disse-nos que estava a acompanhar o outro

transplante, que não tinha informações sobre o nosso filho e

como não estava à espera de nos encontrar, não tinha procurado

saber. Todavia achava que estava a correr bem, isto apesar de

terem surgido dificuldades, nomeadamente uma grande

hemorragia que tinha sido eficazmente controlada. O Dr. Bento

ao dizer-nos isto, não nos descansou nem um pouco, antes pelo

contrário e também ele o deve ter percebido… pouco depois,

apareceu-nos alguém para explicar-nos qual era o ponto da

situação. Já não me lembro quem era, lembro-me apenas que nos

tentou tranquilizar, dizendo que tudo estava a correr bem, mas

que ainda faltava muito tempo até o transplante terminar.

Aconselhou-nos a voltar mais tarde, mas nunca antes das 18:00.

O que aconteceu a seguir, já não consigo recordar com

precisão, o que sei é que pouco tempo depois fomos novamente

para lá e ficámos “de plantão” à espera que o transplante

terminasse. Volta e meia passava um ou outro elemento “com ar”

de ter estado no bloco e íamos notando que as caras estavam

tranquilas e isso também nos dava alguma paz!!

Perto da 18:30 avisaram-nos que o Vitinho estava prestes

a subir e começámos a ver uma maior movimentação, os minutos

pareciam horas e o nosso filho nunca mais aparecia até que se

abriu a porta do elevador e lá estava ele, o nosso herói! A

fotografia não era propriamente entusiasmante, à excepção dos

semblantes alegres dos que o acompanham e do próprio Dr.

Emanuel que nos fez um rasgado sorriso e nos olhou bem nos

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olhos, com confiança e como se deve fazer, frontalmente, até

nos chegar à alma! Não precisou de falar, porque os olhos

disseram-nos tudo, o Vitinho coitadinho, tinha tubos enfiados

por todos os lados, nas narinas, na boca, em ambos os lados do

abdómen, nos braços, enfim, era um bébé pequenino no meio de

uma gigantesca parafernália de maquinetas, tubos, fios, alarmes,

etc, etc, etc.

Apetecia pegar-lhe e acarinhá-lo, mas ele estava sedado e

todo aquele aparato de equipamentos inviabilizava-o.

Permitiram-nos acompanhar o nosso filho até à U.C.I. e lá

pudemos assistir ao cuidado e ao carinho de todos os que o iam

tratando. Todos queriam retocar um tubo, verificar aquela

medida, conferir as gotas do soro, olhar bem para o oxímetro, ver

o batimento cardíaco, etc. Todos os que se debruçavam sobre o

nosso filho, olhavam-no com admiração e se nós os pais lá não

estivessemos, talvez se atrevessem mesmo a beijá-lo, porque o

calor que emanavam dos corações era por demais evidente.

O Vitinho sentiu isso, sentiu a força que todos nós lhe

demos e agarrou-se à vida e lutou por ela até ao auge das suas

forças.

Nos filmes animados de contos de fadas, assistimos

normalmente à transformação dos personagens com cores belas,

suaves, efeitos de luzes, o brilho do pó das estrelas e uma

qualquer varinha de condão que nos vai mostrando a magia do

sonho que nos encanta a imaginação.

Era esse o sonho que estávamos a viver, o nosso filho

estava calmamente a descer das estrelas e a regressar para o

nosso seio abençoado por uma fada celestial, muito bonita e

sorridente e que nos entregava a sua mão, com o respeito no

olhar, num olhar que nos dizia que o tínhamos merecido!

A esclerótica dos olhos lentamente ia tornando-se branca,

branca como nunca a tinhamos visto! A cor da pele também

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estava diferente e nem valia a pena perguntar aos médicos se o

enxerto tinha “arrancado”, pois essa constatação era evidente.

Ainda assim não conseguiamos resistir a perguntá-lo pois

sabia-nos muito bem ouvir a resposta.

Quando o Vitinho emitiu alguns sons, parecia um gatinho

que não conseguia miar, pois os gemidos que lhe saiam da

garganta entubada eram frágeis e delicados. O ‘estado crítico’

obrigava a que permanecesse sedado, mas é verdade que apesar

do cenário “assustador” sentiamo-nos agora cheios de força,

entusiasmados e com a coragem rejuvenescida.

Todos aqueles profissionais maravilharam-nos,
é deles o

milagre
.

Ficámos na UCI todo o tempo que conseguimos, até que

nos aconselharam a ir jantar e dormir.

Há muito tempo que eu e a Lígia não jantávamos juntos

fora do ambiente hospitalar. Lá fomos a um restaurante e esse

jantar, esse sim, já nos soube a alguma coisa.

Depois fomos para o Hotel, dormir para depressa

regressar para ao pé do nosso filho.

Ao longe sentiamos o olhar das nossas filhas, quase

parecia que uma força invisivel em forma de nuvem pairava

sobre nós, unindo-nos. Estávamos todos juntos em coração,

embora longe uns dos outros!

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Cap. VI - O dia do Transplante

CAPÍTULO VI

O DIA DO TRANSPLANTE


Carta a DEUS – 1

Bom dia Deus,

Sei o quanto andas ocupado com a turbulência dos

homens, mas por favor escuta, olha para este ser pequenino que

criaste à tua imagem, vê como sofre e opera o teu milagre. Sei

que te peço muito DEUS, mas sabes o quanto ele é importante

para nós e o que tem ainda para nos ensinar.

Ilumina as mãos dos homens e traz-lhe a saúde que tanto

precisa.

Obrigado Deus por me escutares, estou mais atenta e agora

sei o quanto andava distraída das coisas importantes da vida.

Obrigado Deus

Lígia,

Hospital Pediátrico

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No dia 23 ou 24 de Julho de 2004, não sei precisar, ficou

decidido que o “transplante com dador vivo” seria feito na

semana seguinte, em dia ainda a confirmar. No Domingo, dia

25/07/2004, ao principio da noite, estávamos numa amena

cavaqueira com uma enfermeira, isto já com o Vitinho e a Lígia

no inicio dos preparativos, quando outra enfermeira entrou,

olhou-nos timidamente e chamou a colega. Ambas

comunicaram-nos ‘cautelosamente’ para estarmos preparados,

porque “parecia” que havia um dador compatível!

Nesse momento, algo aconteceu que mexeu com as nossas

emoções, ficámos em meditação e a Dra. Isabel veio conversar

connosco! Eu fiquei mudo, sem reacção, e a Lígia ficou muito

emocionada porque, agora que as coisas já estavam programadas,

ela queria continuar a ser a dadora, mas obviamente que tal já não

seria possível! Primeiro porque, só se é dadora uma vez na vida e

assim ela ficaria disponivel para outra altura se tal se viesse a

mostrar necessário, depois porque qualquer cirurgia envolveria

riscos e o facto de termos mais duas filhas inibia-nos sequer de

questionar a decisão. Aliás dadas as características do dador, que

por respeito da sua memória não as descrevo, seria absurdo não

aceitar esse fígado, e mesmo que o fizessemos, garantidamente

que ninguém nos ouviria! Para além de tudo isto, também eu me

opunha, dadas as circunstancias, obviamente, seria uma idiotice

colocar a vida da Lígia em perigo!

Mas a reacção da Lígia era natural e compreensível! Ela

sentia-se um pouco responsável pela insuficiência do Vitinho e por

isso, se a medicina permitia corrigir “o erro”, então parecia-lhe

imperioso que fosse ela a fazê-lo!

O dia que estávamos quase a iniciar seria sem sombra de

dúvidas o dia mais longo das nossas vidas. As horas passavam

muito lentamente e nesse dia o Hospital Pediátrico estava

estranhamente calmo! Entretanto juntou-se novamente a nós a Ana

Paula que fez questão de nos acompanhar nessa fase mais crítica.

Cerca das 2:00 chamaram a ambulância que iria levar a

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Lígia e o Vitinho do Pediátrico até aos H.U.C. Acompanhei-os de

carro, mais a Ana Paula e na ambulância, acompanhou-os a

Enfermeira Helena que dificilmente conseguia suster as lágrimas.

Nos H.U.C. a tensão era evidente e fomos conduzidos ao

“bloco”. A contrastar esse sentimento, uma cara simpática e

sorridente recebeu-nos e perguntou-nos se um de nós queria

acompanhar o Vitinho lá dentro. A Lígia entrou e ao vê-los

entrar, senti o meu coração apertar, apertar, apertar… quase

parecia que estávamos a pairar sobre um precipicio que nos

sugava para o infinito.

Fiquei eu e a Ana Paula naquele sítio frio, desagradável e

esperámos o regresso da Lígia. Um bom pedaço depois ouvimos

umas portas a bater, um estrondo, um som metálico e de repente

apareceu-nos uma maca com um corpo todo coberto por um

lençol. Gelámos, eu e a Ana Paula, aquele corpo era o corpo do

dador. Fiquei sem palavras e olhei com respeito para o vulto

desse alguém! O vazio da morte na esperança da vida, lágrimas

que correm com fundamentos opostos, nas nossas faces e nas dos

seus entes-queridos!

domingo, 20 de maio de 2012

1º Transplante Hepático no Pediátrico

Finalmente a promessa cumpriu-se!!

Agora que já estou a publicar o meu livro no Blog, os menos informados irão reparar que a determinada altura explico no Lutar até Viver o porquê de querermos que os transplantes fossem efectuados em ambiente pediátrico. Esta ambição era antiga e prendia-se com a dificuldade de mudar a criança transplantada dos cuidados intensivos dos HUC para o Hospital Pediátrico, a existência de umas malditas lombas em frente ao Hotel Tryp (antigo Melia), etc, etc, etc!

A promessa que tinha sido publicamente assumida pelo Prof. Fernando Regateiro nunca se concretizou e depois, obviamente que nós na Hepaturix, com a inauguração do novo Pediátrico e com as fenomenais instalações que passámos a dispor, reivindicámos ainda mais a sua concretização!!

O Dr. Emanuel disse-me pessoalmente que era essa a solução que iria defender e o Dr. Carlos Bento disse-me em momento diferente precisamente a mesma coisa.

Como era natural e desejável, até o Pediátrico estar em condições de receber o primeiro transplante pediátrico, os transplantes entretanto retomados teriam de se fazer no Bloco dos HUC, mas ontem finalmente fez-se história e esse sonho realizou-se!

Parabéns a todos que sempre apostaram nesta solução!

Parabéns a Coimbra que continua a orgulhar-nos com o que melhor se faz no mundo da medicina!


PS: parabéns também a Coimbra pela sua Taça de Portugal ganha com todo o mérito.

sábado, 19 de maio de 2012

Capítulo V

À ESPERA DE UM FÍGADO
O fígado, esse tardava! O nosso filho estava em S.O.S., a
sua degradação era galopante e começámos a ter consciência do
que era “um estado terminal”. A Dra. Isabel mandou-nos fazer
um electroencefalograma, os resultados eram bons, mandou
fazer outra ecografia ao coração porque a última tinha detectado
qualquer coisa que depois não se chegou a confirmar! Era exame
aqui, exame acolá, a rotina era penosa e desgastante, quase
parecia que estávamos no interior de uma esfera de céu azul que
ia sendo consumida pelo escuro tenebroso da penumbra que a
envolvia, asfixiando-nos muito lentamente.
Quando, noite dentro, regressava a casa, dava por mim a
não querer ouvir as notícias, pois quase tinha medo que um
subconsciente diabólico desejasse que alguma desgraça
acontecesse, não queria saber se tinha ocorrido algum acidente,
não queria procurar eventuais dadores entre as vítimas fosse do
que fosse, era uma luta permanente entre sentimentos e
paradoxos e eu …“fugia” de tudo!
Durante o sono também era assaltado por sentimentos
contraditórios, mistos de confusões, fantasmas e por vezes
acordava desorientado.
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A NOITE
A noite chega
Não pára na porta
Entra
Entra e senta-se à mesa
Deita no chão o casaco
Sobre a mesa, pousa os braços
E aguarda
Aguarda pelos esfomeados
Pelos perdidos
Pelos temerosos
E deixa correr as horas…
As horas da noite são longas
Os ponteiros derretem nos segundos
Os minutos são longos
A noite instala-se na sala,
No quarto, no mais
Recôndito ponto da mente
Escurece a esperança
Endurece a raiva
Enfraquece a coragem
Mina os projectos
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De noite, a noite reina
Domina, dança e brinca
Brinca com as fragilidades
Goza com os medos
E amordaça a aurora
Um raio de luz estala o cenário
A noite levanta-se
Apanha o casaco, recolhe as horas
A Aurora geme, faz saltar a mordaça
A noite afasta-se
Suspira
Até mais logo
Lígia
Hospital Pediátrico de Coimbra
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Mas regressemos ao problema fulcral. Na reunião
anteriormente referida, o facto do Dr. Emanuel ter mostrado
alguma resistência, deixou-nos literalmente em pânico! Não
queríamos mostrar o nosso desespero mas tivemos mesmo de
convencer o Dr. Emanuel! E foi o que aconteceu, ele percebeu a
nossa determinação e como nós, também acreditou que as coisas
só poderiam correr bem. O Dr. Emanuel passou de um
posicionamento cauteloso, algo distante, para o apoio
entusiástico e pouco tempo depois saiu na sua moto, foi buscar
uma documentação para assinarmos, marcou uma ressonância,
um TAC com contraste e ‘já não sei mais o quê’, tudo isto ao
final da tarde e nesse mesmo dia, à meia-noite estávamos a entrar
numa clínica para fazer todos os exames e às ‘duas e tal’ da
manhã regressávamos ao Pediátrico com a Lígia “meia grogue”
e muito bem-disposta, com a informação reconfortante de que
aparentemente “deveria ser” uma “excelente dadora”!
No dia seguinte fomos aos H.U.C. (5) conhecer o
ambiente e conversar com o Dr. Bento, anestesista que
necessitava de alguns dados da Lígia.
Vimos a enfermaria e pela primeira vez tivemos contacto
com outros pacientes que aguardavam transplante, embora estes
fossem adultos, estivemos na UCI (6) (porque não tinha nenhum
paciente nessa altura), ou seja, o Dr. Bento recebeu-nos de forma
superior, explicou-nos tudo direitinho, descreveu a equipa,
conseguiu inspirar-nos ainda mais confiança e ficámos a ter uma
noção de como funcionava esta vasta equipa!
Tanto na noite anterior, como nesta tarde da visita aos
H.U.C., tivemos a preciosa ajuda de uma querida amiga, a Ana
Paula. A Lígia telefonou-lhe a explicar que ia ser submetida a
exames para aferir se poderia ser dadora e que estávamos com o
problema de ter de deixar o Vitinho sozinho na enfermaria! Ela
imediatamente meteu-se no carro e veio do Porto para Coimbra.
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Tomou conta dele até chegarmos e já de madrugada regressou ao
Porto. No dia seguinte, lá estava ela novamente para nos permitir
ir aos H.U.C.. Entreteve o Vitinho a ver o Spirit da
“DreamWorks” que ele já tinha visto umas quinhentas vezes,
mas que adorava, e ela também adorou… e até chorou! Mais
tarde ainda brincámos um pouco com a situação, a Ana Paula era
sem dúvida uma excelente companheira para acompanhar o
Vitinho nessas incursões emocionantes pelos filmes de animação
cheios de dramatismos e maldades dos “homens maus”!
Regressemos à visita aos H.U.C. . A partir daqui o
transplante poderia fazer-se a qualquer altura e nunca mais
pensámos no SOS, nem nos dadores, nem em nada! Ficámos
simplesmente à espera que as coisas acontecessem!
Uma certa “paz de espírito” perseguia-nos e
tranquilizava-nos. Tínhamos dado o passo certo e tomado a
opção correcta. Nas nossas conversas nunca surgiam dúvidas ou
medos, realmente os dois estávamos bem sintonizados e
fortemente unidos. Apesar da nossa fragilidade emocional,
sentíamo-nos fortes para encarar essa batalha e começámos logo
a fazer projectos de como conciliar tudo com as miúdas, etc. Era
evidente que no período inicial as coisas não seriam fáceis! A
Lígia e o Vitinho teriam de ser separados, ela ficaria nos H.U.C.
e ele acabaria por regressar ao Pediátrico, mas nem tudo seria
complicado, pois tínhamos a Ana Paula, a minha Mãe também
ajudaria, a minha Sogra, e a Lígia… finalmente poderia dormir
numa cama normal!
43

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Agora que a leitura já chegou ao primeiro terço

Relembro os meus contactos

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Tlf: 00 351 96 421 5245

Rua Visconde de Ovar, 8
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Quem tiver curiosidade de perguntar algo, esteja à vontade, poderá fazê-lo directamente no blog ou através dos meus contactos.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Cap. IV (cont.)

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Para quem não o conhece, entrar no Hospital Pediátrico
não é propriamente uma experiência muito reconfortante. O
Hospital Pediátrico de Coimbra encontra-se instalado há muitos
anos num edifício muito antigo com condições modestas e
inadequadas para o fim que lhe foi “imposto”, enfim, por vezes
os N/ políticos esquecem-se dos mais pequeninos…. e que a
saúde é o bem mais precioso de todos, o único que não tem
preço. Somos o país do nosso planeta, que mais estádios de
futebol novos tem … às moscas! O novo Hospital Pediátrico e
que já existe, tarda em estar pronto, é uma necessidade por que
Coimbra e Portugal desesperam!
Se as condições físicas do hospital são muito limitadas,
os seus recursos humanos, esses, são inexcedíveis! Os seus
médicos, técnicos, enfermeiros, pessoal auxiliar, etc, etc, etc, são
do melhor que temos, superam-se e superam as limitações
materiais do próprio hospital.
O nosso caso “era mais um”, mas hoje em consciência
sabemos que todos somos muito mais do que isso! Todos
entregaram-se ao nosso caso com total dedicação, com carinho e
com a mesma preocupação, salvar o Vitinho! Não foi só nas
nossas faces que rolaram lágrimas de desespero e de medo, todos
fizemos uma grande equipa, a melhor equipa!
Nas mãos da Dra. Isabel iniciámos os preparativos para a
derradeira batalha. Mais uma vez a nossa vida não foi fácil, Ovar
ficava um pouco mais longe de Coimbra do que do Porto e
muitas vezes via-me forçado a ficar hospedado num hotel em
frente ao Hospital Pediátrico. Outras, ia tardíssimo para casa,
para logo ás 8:00 regressar a Coimbra! Uma noite, lembro-me
que me despedi da Lígia já perto da 1 hora da manhã e 20
minutos depois já estava em casa, deitado! Nunca percebi o que
aconteceu, mas a viagem deveria ter demorado 1 hora… enfim,
não sei, talvez o
stress fosse de tal ordem que me baralhei e fiz
confusão, mas nada disto é importante, a tensão, a pressão, tudo
justifica!
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É verdade que nessas viagens ausentava-me um pouco,
pois ia sempre a repetir incessantemente “ele vai salvar-se”, “ele
vai vencer”, “ele vai salvar-se”, “ele vai sobreviver”, “ele vai
vencer”, “ele vai viver” etc, etc e muitas vezes chegava a Ovar,
ou regressava a Coimbra, sem que desse pelo passar do tempo!
A Lígia por outro lado, tinha um papel muito mais
complicado, por um lado ela não queria largar o Vitinho um
segundo que fosse, por outro, tinha necessidades fisiológicas,
tinha de comer, tinha de cuidar da sua higiene pessoal, tinha de
dormir... Já íamos no terceiro mês “em hospitais” e durante este
período ela dormiu em camas normais muitas poucas vezes. O
habitual era uma cadeira ou cadeirão e isto era um problema
comum às muitas mães que acompanhavam os seus filhos, quer
no Stº António quer no Pediátrico.
Sempre que eu ficava hospedado no hotel em frente,
então aí ela saía uma meia-hora e ia tratar um pouco de si, pois
ao refrescar o corpo, também refrescava a alma! Não podia
dormir lá porque ‘a mama’ ainda era o que mantinha o Vitinho
minimamente nutrido. Ele agarrava-se à mama da mãe, como se
agarrava à vida, e o leite materno tinha as únicas proteínas que
ele ingeria. Como dizia a Dra. Isabel era melhor deixarmos
entrar essas proteínas, pois se ele estivesse completamente
privado delas, iria entrar num processo de compensação o que
poderia ter consequências adversas.
Por outro lado, a Dra. Isabel ia tentando manter o nosso
filho equilibrado. O transplante poderia ter de ser feito de
repente, mas aparentemente ainda tínhamos uns dias! O
sofrimento do Vitinho, esse, tinha sido radicalmente reduzido, o
sangue para as muitas análises continuava a ser necessário, mas
as coisas melhoraram consideravelmente, primeiro, porque
sempre que era possível, o local da picadela era previamente
anestesiado (com um creme tópico - anestésico local - à base de
Lidocaína e Prilocaína), tal só não acontecia nos “picos de
febre”, pois aí a utilização da pomada era contra-indicada para se
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poder “encontrar o bichinho”, depois porque as enfermeiras do
Pediátrico eram de uma sensibilidade extrema, por exemplo, a
Enfermeira Isilda nunca falhava uma veia. Era “tiro e queda”,
espetava, e lá estava o sangue a correr para o tubo….
Mas o nosso filho já não estava só amarelo, a cor era
indescritível, era um castanho/esverdeado que nos matava
também a nós! Os outros órgãos eram monitorizados com
frequência, especialmente o baço que estava aumentado, fora
isso, o cérebro, os rins, o esófago e o coração estavam ok! O
fígado, esse é que estava num processo de degradação acentuado.
A ‘hora’ estava visivelmente a aproximar-se e a Dra.
Isabel, na nossa presença, ligou à Dra. Ana Maria do gabinete de
coordenação de transplantes e pediu-lhe que fosse lançado um
S.O.S. para o Vitinho. A partir deste momento o nosso filho
estava na “lista” dos transplantes muito urgentes e qualquer
dador compatível teria de ser obrigatoriamente referenciado a
Coimbra, porque os pacientes em S.O.S. passavam à frente dos
restantes. Havendo vários S.O.S. a lógica seria o bom senso e a
ponderação que os médicos fizessem do estado clínico dos seus
pacientes! Percebemos pela primeira vez que aquilo que deveria
ser simples não o era, é que a Dra. Isabel queria ter a certeza que,
se o fígado aparecesse, era-nos atribuído, pelo menos um
segmento… É aqui que se torna relevante a politica de colheita e
afectação de órgãos e que hoje em dia já não é a mesma que
estava vigente nessa época! A Dra. Isabel o que queria era que,
caso aparecesse um dador, um dos lóbulos viesse
necessariamente para Coimbra, pois o outro receptor não ficaria
prejudicado e assim optimizava-se a utilização desse órgão.
Entretanto já tínhamos conhecido o principal cirurgião, o
Dr. Emanuel. Se se pensava que o processo de transplante estava
perfeitamente decidido e era um dado adquirido, enganem-se!
Faltava ainda convencer o Dr. Emanuel (e a Dra. Isabel!) a
aceitar a Lígia como dadora! Ou seja, por um lado tínhamos um
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problema, não havia órgãos e temíamos que não chegassem a
aparecer (o tipo de sangue não era o melhor porque
potencialmente os fígados compatíveis eram mais difíceis de
obter), por outro, a Lígia corria o risco de não poder ser dadora!
Eu já tinha sido excluído por não ser compatível, mas mesmo
que fosse, dada a minha estatura, dificilmente o meu fígado
serviria para alguma coisa por ser demasiado grande!
Em relação à Lígia, as dúvidas do Dr. Emanuel eram
essencialmente duas e de natureza diferente. Por um lado,
tínhamos um problema do foro médico que se subdividia em
outros dois, a Lígia ainda amamentava e essa era uma situação
nova, por outro lado, o problema genético que originou a
falência hepática poderia ter origem nela própria. Ambos ‘fomos
estudados’ durante a gravidez, por causa do problema do
intestino hiperecogênico e nessa altura, as análises da Lígia
revelaram algumas alterações….
Ou seja, no caso da amamentação, não havia registos de
outros casos clínicos idênticos e na dúvida talvez fosse
recomendável não fazer o transplante, no caso da
hereditariedade, o problema era este, é que poderia fazer-se o
transplante e não se resolver o problema, pois o novo fígado
poderia vir a padecer do mesmo mal!
Seria pouco provável, mas era possível e em boa verdade
não existiam estudos que demonstrassem o contrário! Como
dizia o Dr. Emanuel, bastaria haver uma dúvida e eles não
poderiam ignorá-la… e tudo poderia cair por terra! Por outro
lado, tínhamos um dilema ético, é que tínhamos mais duas filhas
e embora os dadores corram sempre um risco de vida
“calculado” (se assim se pode dizer!), apesar de tudo dizia, ele
existe, isto é, há sempre risco de vida, risco das nossas filhotas
ficarem órfãs de mãe!
Numa reunião que ambos tivemos com a Dra. Isabel e
com o Dr. Emanuel tentámos convencê-los a aceitar a Lígia
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como dadora. Pareceu-nos que a Dra. Isabel concordava com os
nossos argumentos e aparentemente só o Dr. Emanuel é que
parecia resistir, por isso “apontámos-lhe as baterias”. Nesta fase
o que mais o preocupava era o problema da “herança genética”.
O nosso grande argumento, é que a Lígia era “dadora universal”
isto é, se tivesse um acidente poderia ser dadora para todos nós,
à excepção do seu próprio filho! Parecia-nos um disparate e um
absurdo…
Aqui, confesso, fui assaltado por uma série de dúvidas, é
que eu estava “de corpo e alma” a forçar o transplante sendo a
dadora a Lígia. Ainda que ela estivesse tão ou mais apegada à
ideia do que eu, era verdade que eu ficaria fora do processo, isto
é, eu iria num mesmo momento ter o meu filho em risco de vida,
a minha mulher em risco de vida e duas filhas à espera de todos
nós em Ovar!
Convenhamos que a minha posição não era fácil, eu
recusava-me a pensar que alguma coisa poderia correr mal, tinha
uma enorme fé que aquela seria a solução milagrosa, mas por
vezes, por um milésimo de segundo aparecia um fantasma
malévolo que me questionava “e se correr mal?”. Em boa
verdade e como já o referi, recusei-me a equacionar essa
hipótese, não queria ouvir, não queria pensar, não queria sequer
imaginar, para mim, tanto a Dra. Isabel como o Dr. Emanuel
Furtado eram os representantes de Deus, tínhamos de confiar e
acreditar neles! Não sou ‘especialmente’ católico, não gosto de
muitos dos rituais, como benzer, rezar, ajoelhar, etc, etc, e
sempre achei que se Deus existisse seria um Velhote simpático
que nos receberia de braços abertos. Nunca nos exigiria,
confissões, penitencias, rezas e coisas do género! Mas sem
dúvida que o facto do Dr. Emanuel se chamar Emanuel,
assentava-lhe que nem uma luva, digamos que sentíamos
Deus… nas suas mãos, por outras palavras o Homem
completava o Divino!
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ilustração por Inês
Dentro da desgraça e das derrotas diárias que nos iam
vergando, tínhamos de arranjar algumas vitórias e nessa fase,
pouco nos restava para além da fé que tínhamos nas equipas
médicas e na confiança de que algo superior iria finalmente
aparecer para salvar o nosso filho.
Já nos perguntaram diversas vezes, “é preciso muita
coragem para se ser dador” e uma vez num programa de
televisão (“Sete Pecados, Sete Virtudes” – RTPn) incluíram-nos
na “generosidade”. A ideia que muitos têm, a ideia que passa
imediatamente e que o próprio Dr. Emanuel Furtado já referiu
publicamente e diversas vezes, é que o dador é alguém que com
completo desapego pela sua vida oferece algo de mais precioso,
uma parte de si com risco da própria vida!
Não é que discorde, mas quem passa, pelo que passámos,
vê tudo isto de uma forma mais simples, é que nestas patologias
hepáticas não temos escolha e vem ao de cima o pragmatismo,
ou se faz o transplante ou se morre, não há uma terceira via!
O nosso propósito era salvar o nosso filho, logo não
tínhamos escolha! No nosso “código genético” esta seria uma
daquelas situações que não ofereciam dúvidas, da mesma forma
que já não a quisemos relevar quando se levantou a questão da
interrupção da gravidez!
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CAPÍTULO IV
 
HOSPITAL PEDIÁTRICO DE COIMBRA


Há muito que não escrevo
Dizem que só escreve quem está infeliz
Deve ser verdade
Estou num mar negro de infelicidade
E nado, tenho de nadar e chegar a terra
Estou a ver a margem lá longe
Mas ela está lá
Por isso vou nadar e passar as vagas
A rebentação é tensa
Mas eu hei-de chegar a terra
E depois descansarei na areia
Mesmo que o mar me banhe os pés
Os meus braços não se cansarão
Estou certa disso e vou
Levar o meu filho até à margem
Ele correrá pela areia
Tenho de conseguir

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Que o vento me seja favorável
E que a coragem me sirva de vela
Nadarei, nadarei
A margem é já ali e eu vou chegar
Lá e porei o meu filho
A correr em terra firme
Nado, nadarei

Lígia Costa Martins

Hospital Pediátrico de Coimbra, Julho de 2004





ilustração por Inês

terça-feira, 15 de maio de 2012

Capítulo III (cont.)

Como já referi, mandámos então o relatório da Dra.

Margarida Medina direitinho para Paris e ficámos na expectativa

da resposta.

Nesta altura e apesar de uma passagem de poucos dias em

casa para recompor forças, as coisas começaram a precipitar-se e

perante as evidências, a Dra. Margarida Medina marcou uma

reunião connosco, com a Dra. Ermelinda e com a Sissi.

Foi nesta altura que soubemos que o programa de

transplantação hepática pediátrica de Coimbra não se tinha

extinguido aquando da jubilação do Sr. Professor Linhares

Furtado. Tudo isto aconteceu muito repentinamente e a

informação foi-nos dada simultaneamente quer pelo Professor

Olivier através da Abiba, quer pela própria Dra. Margarida

Medina. A Dra. Margarida Medina, apesar de conhecer o Dr.

Emanuel e a Dra. Isabel, pensava que o programa de TRH estava

parado pelas razões já citadas!

O Prof. Olivier o que nos disse foi que deveríamos optar

por efectuar o TRH em Coimbra, pois os resultados eram

excelentes, ao nível do melhor que se fazia no mundo e ele

achava que o Dr. Emanuel era o cirurgião indicado para o fazer.

Na tal reunião, basicamente o que se disse foi tudo isto e

que para irmos para Paris ou Bruxelas necessitávamos de

200.000 euros (com o transplante a correr bem!) e um de nós

seria o dador-vivo. O ‘a correr bem’ significava que a

recuperação seria de três dias nos cuidados intensivos e em

oito/dez dias estaríamos de regresso a Portugal!

Nessa altura sentíamo-nos um pouco perdidos e não

sabíamos que fazer. A Dra. Margarida Medina e a Dra.

Ermelinda achavam que deveríamos ir a Coimbra conhecer a

equipa de Coimbra e só depois decidir…

O problema monetário também existia, mas esse

aparentemente ultrapassava-se, porque, várias pessoas

ofereceram-se para ajudar, nomeadamente a Sissi, o Joaquim

(dono da empresa entidade patronal da Lígia), a Ana Paula uma

colega, a minha Tia Rosa, ou seja, todas as contribuições deles e

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mais alguns bens que possuíamos aparentemente chegavam para

garantir o TRH!


Ilustração por Inês

Mas algo nos dizia que deveríamos ir a Coimbra e assim

o fizemos! Com os preparativos da ida e até pelo comportamento

dos profissionais do Stº António, fomo-nos apercebendo que essa

ida seria definitiva…

Nessa altura deveríamos estar a partir de férias para Ibiza.

Em vez disso e por ironia do destino, estávamos de malas e

bagagens, mas em direcção a Coimbra!

A Lígia e o Vitinho foram numa ambulância de manhã

muito cedo e eu apanhei-os na auto-estrada na zona entre

Estarreja e Aveiro. Esta viagem foi penosa e estranha e quando

chegámos a Coimbra, ao parque de estacionamento do

Pediátrico, tudo nos parecia sombrio e triste.

À nossa espera tínhamos a Dra. Isabel Gonçalves.


domingo, 13 de maio de 2012

CAPÍTULO III

UM PASSO SEM RECUO

Entretanto também começámos a indagar na internet à

procura de soluções e aí deparamos com um mundo tenebroso de

coisas terríveis. Mas tínhamos uma guerra pela frente e não nos

podíamos deixar vencer pelo medo e por todos os fantasmas que

nos perseguiam.

As enfermeiras e auxiliares frequentemente ficavam

espantados com o nosso envolvimento e com a nossa

persistência, pois percebiam que estávamos no meio dessa

guerra pela vida. Muitas vezes ao perceberem que tínhamos mais

duas filhas, diziam aliviados, “ah, têm mais filhos…” como se

essa constatação minorasse o sofrimento perante o desastre que

parecia eminente!

Com efeito sempre estivemos presentes, a Lígia

permanentemente, mas eu ia a casa amiúde para tentar equilibrar

as coisas com as nossas filhas. No entanto o nosso apoio escolar

deixou de existir, mas elas portaram-se como umas heroínas e os

meus pais ajudavam-nos dentro das suas limitações.

Nessa fase andava tão ocupado em desempenhar o meu

papel num e noutro lado, que talvez isso funcionasse como um

forte analgésico. Estava todos os dias no Stº António com a Lígia

e com o Vitinho, ao final da tarde e muitas vezes já noite dentro,

é que rumava a casa. Lá conversava um pouco com os meus pais,

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com a Inês, com a Patrícia e ia dormir para acordar cedo no dia

seguinte e recomeçar tudo de novo! Todos os dias fazia o mesmo

ritual, isto é, estacionava o carro no parque de estacionamento

subterrâneo perto do Hospital e ia até junto da Lígia a repetir vezes

sem conta entre dentes, “ele vai salvar-se”, “ele vai salvar-se”,

“ele vai sobreviver”, “ele vai vencer”, dizia-o milhentas vezes,

quase como se rezasse desesperadamente, mas motivando-me

para a luta.

Chegado ao hospital, uns dias encontrava uma Lígia

forte, outros mais frágil, enfim, se já nos amávamos muito, aí

percebemos também que juntos fazíamos uma equipa que

poderia vencer o universo! Sei que estas “provas” agastam e

separam alguns dos pais e nós vimo-lo com os nossos olhos, mas

no nosso caso particular, criou-se um novo elo que não se

quebrava, uma força que não conhecíamos!

A Dra. Margarida Medina percebeu-o e incluiu-nos na

sua equipa. Por outro lado, entrámos em contacto com a Abiba,

uma amiga patologista em Paris e através dela chegámos ao Prof.

Olivier.

Pedimos à Dra. Margarida Medina que nos fizesse um

relatório de tudo, nós mesmos o traduzimos e enviámos ao

cuidado do Professor. Paralelamente a Dra. Margarida Medina

encetou contactos com Bruxelas, pois era com esse centro de

TRH (4) que o Hospital Santo António lidava habitualmente.

Faço aqui um parêntesis para explicar o seguinte, ainda

antes do internamento no Santo António, consultámos um

médico pediatra cujo consultório ficava perto da Boavista, no

Porto, e que se tinha especializado em Paris. Foi aqui que

começámos a perceber que as doenças hepáticas tinham vários

palcos, sendo que no estrangeiro (aparentemente) estavam os

mais desejados, embora nessa altura ainda não estivéssemos bem

conscientes que a solução poderia passar pelo TRH.

Mas… maldita a hora em que consultámos esse médico!

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Fomos lá gastar dinheiro e “perder tempo”! O que ele nos

transmitiu, sem o dizer expressamente, é que o caso do nosso

filho era um caso muito difícil, talvez até já perdido! Isto para

além de uma meia-dúzia de barbaridades que pudemos

comprovar mais tarde serem mentira! Por exemplo, que em

Portugal não havia ninguém nem nenhum hospital à altura de

ajudar o nosso filho e que seria impensável efectuar-se uma

simples biopsia hepática pois não poderíamos confiar nem na

habilidade técnica do executor, nem na fiabilidade dos

resultados, etc, etc, etc! Para ele, a haver uma solução, a mesma

estaria exclusivamente em Paris, portanto, ou íamos

imediatamente para lá, ou ‘a coisa’ estaria perdida!

Mais um médico que não teve sentido de humanidade,

bom senso, nem saber, para lidar com um casal desesperado e

que tentava a todo o custo salvar a vida do seu filho.

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O Caça Sonhos – por Inês